Esquerda latino-americana diz que houve um golpe contra Dilma e EUA reiteram confiança nas instituições. Novo chefe da diplomacia promete tirar a ideologia da política externa
Quando o telefone toca no gabinete no Palácio do Planalto, o presidente interino do Brasil, Michel Temer, sabe que do outro lado da linha não vai estar o presidente norte-americano, Barack Obama. Nenhum telefonema oficial sairá da Casa Branca sem estar concluído o processo de impeachment de Dilma Rousseff, com os EUA a limitarem-se a reiterar a "confiança" no Brasil e na "capacidade das instituições democráticas em resistir às turbulências políticas". Washington mantém um silêncio respeitador, ao contrário de Cuba, Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua ou El Salvador - países da esquerda latino-americana - que condenaram o "golpe" contra a presidente eleita.
"Não pedimos que opinassem, mas já que tem países que opinaram, a posição dos EUA é correta. O que eles disseram é correto", disse o novo chefe da diplomacia brasileira, o senador e ex-candidato presidencial do PSDB, José Serra. Foi reação às declarações do representante de Washington na Organização de Estados Americanos (OEA), Michael Fitzpatrick, que disse que nos EUA há "um evidente respeito pelas instituições democráticas".
Temer, vice-presidente de Dilma, assumiu a presidência interina do Brasil depois de o Senado, a 12 de maio, ter votado para dar início ao processo de impeachment, suspendendo a presidente por seis meses. O Partido dos Trabalhadores, de Dilma, fala em "golpe", uma ideia repetida nos países aliados da região. Venezuela e El Salvador chamaram mesmo os embaixadores para consultas. O presidente salvadorenho, Salvador Sánchez Cerén, eleito pela Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (ex-guerrilha), disse logo que "não reconhece o governo interino" por considerar que o processo de impeachment foi "contrário à vontade popular".
Por seu lado o governo venezuelano, de Nicolás Maduro (contra quem a oposição quer convocar um referendo revogatório), considera que Dilma está a ser vítima de "uma ofensiva motivada por vingança daqueles que perderam as eleições e são incapazes de chegar ao poder por outra via que não a força". Bolívia, Cuba e Nicarágua falam em "golpe". O Equador considera Dilma a "legítima depositária do mandato popular expressado nas últimas eleições democráticas", e diz esperar que as atuais circunstâncias sejam superadas pelo "Estado de Direito e estrito respeito às instituições democráticas" brasileiras.
"Chile e Uruguai não falaram de golpe. Mas também não reconheceram Temer. Michelle Bachelet e Tabaré Vázquez são amigos de Dilma. E estão condicionados pelas "alianças domésticas. Bachelet está associada ao Partido Comunista, que se alinha com o chavismo. E Vázquez tem que ajustar-se às posturas do antecessor, José Mujica, que milita no quadrante bolivariano", escreveu o jornalista argentino Carlos Pagni, do jornal La Nación. Mujica disse que "o sistema político no Brasil está doente".
A primeira reação do novo chefe da diplomacia brasileira foi "rejeitar enfaticamente" as declarações dos governos que "dão opiniões e espalham falsidades sobre o processo político interno do Brasil", lembrando que a suspensão de Dilma ocorre com "absoluto respeito às instituições democráticas e à Constituição". José Serra considerou ainda as críticas do exterior "aparelhadas", isto é, fruto do aparelho da esquerda latino-americana. "É uma coisa localizada e passageira. Está tão óbvio que o que é espalhado lá fora não tem pé nem cabeça que pouco a pouco isso vai passar".
Já no primeiro discurso público Serra não hesitou em dizer que "a nova política externa do Brasil estará atenta à defesa da democracia e aos direitos humanos em qualquer país" sem "refletir questões ideológicas". E que "a diplomacia brasileira voltará a refletir o interesse da sociedade como um todo e não o de um partido e seus amigos no exterior". As prioridades de Serra são a Argentina, principal parceiro económico do Brasil, além do México, dos EUA e da União Europeia.
O presidente argentino, Maurício Macri, foi o primeiro a reconhecer o governo interino de Temer, mas Buenos Aires espera o desenrolar dos acontecimentos. Segundo o El País, Temer ainda não recebeu um telefonema oficial de Macri. A chefe da diplomacia, Susana Malcorra, explicou a posição ao El Clarín: "Do ponto de vista formal, não se pode dizer que o processo tenha desrespeitado a legalidade. Pode-se questionar se há legitimidade, que é o que gera desconforto". Quanto a um golpe contra Dilma, repetiu: "Por isso é que faço a distinção entre legalidade e legitimidade. Creio que ela se referia à legitimidade. Do ponto de vista formal, as instituições seguiram as formalidades."