Conservador nos costumes, hábil no tráfico político, o sucessor de Dilma rompe com o passado - mas só
o passado recente. Pai de cinco filhos, casado com Marcela, 42 anos mais nova, gosta de vinho e de escrever poemas
"Bem-vindos a 1964 com wi-fi", escreveu um jornalista à hora em que Michel Temer e o seu governo tomavam posse, numa referência ao ano do golpe militar. Pode ser uma associação injusta, mas Temer, 75 anos, o mais velho presidente a assumir o Brasil, conhecido no meio político como "mordomo de filme de terror" e com fama, não comprovada, de satanista, não se ajudou na cerimónia.
Os primeiros slogans soaram a bolor: recuperou o "ordem e progresso", escrito desde 1889 na bandeira; citou Eurico Dutra, presidente (e militar) dos anos 40, ao afirmar-se "fiel ao livrinho", a respeito da Constituição; e usou um cartaz que lera num posto de gasolina como novo mantra: "Não fale em crise, trabalhe." No dia seguinte, a imprensa procurou o posto que o inspirou e descobriu que tinha falido.
Atrás de Temer, um executivo só de homens, depois de 2015, marcado por dezenas de iniciativas de feministas, ter sido considerado o ano da "Primavera das Mulheres". Com isso, estabeleceu um perigoso contraste com o governo da "presidenta" Dilma Rousseff (PT). E trouxe de novo para as manchetes o "bela, recatada e do lar", reportagem da conservadora revista Veja sobre Marcela Temer, 42 anos mais nova do que o marido.
No segundo país do mundo com mais negros, atrás apenas da Nigéria, os ministros de Temer são brancos. Na sua maioria saídos do desgastado Congresso Nacional; mais de metade responde a processos; quase um terço, incluindo Temer, é investigado ou foi citado na Operação Lava-Jato. E no meio deles está o titular do recém-criado Gabinete de Segurança Institucional, Sérgio Etchegoyen, um general do exército, num país sob ditadura militar de 1964 a 1985.
Dilma fala em "golpe" e apela à luta pela democracia. Temer já tomou posse
Quem conhece a trajetória de Temer não se surpreendeu. Doutor em Direito, o filho de libaneses nascido em Tietê, estado de São Paulo, foi secretário de segurança pública da maior cidade brasileira nos anos 80. Sugerido para o cargo por Miguel Reale - um dos subscritores do pedido de impeachment de Dilma -, manteve como linhas mestras a manutenção nas ruas da polícia de choque e o ataque à pornografia. "Sexo explícito no cinema e por escrito é incentivo ao crime", afirmou.
Como procurador-geral de São Paulo, envolveu-se no caso da importação de equipamentos eletrónicos de Israel, em 1991, ao dar parecer favorável a um negócio com indícios de sobrefaturação superior a 2000%, segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, à época. O Tribunal de Justiça rejeitou, no entanto, a denúncia de que o dinheiro serviria para irrigar a campanha presidencial de Orestes Quércia, candidato do PMDB, a que Temer pertence.
O caso não o impediu de se eleger deputado três vezes - na última delas, porém, obteve apenas 0,4% dos votos. "Não é um político de massa", justifica o amigo Gaudêncio Torquato ao jornal O Estado de S. Paulo. Mas é hábil e conciliador, qualidades que o levaram à presidência da Câmara em duas ocasiões, na viragem do milénio.
House of Cards e Vermout
Como entretanto se tornou presidente do PMDB, o aliado por conveniência do PT, foi indicado para vice de Dilma, no lugar de Henrique Meirelles, o hoje ministro das Finanças, com quem ela não sentia química. A química entre Dilma e Temer também não se revelou famosa. "Estou a falar há minutos com o senhor, com ela não digo uma frase sem ser interrompido", queixou-se no último diálogo que manteve com Lula, em março, estava o impeachment a ganhar corpo.
Temer é consumidor ávido da série de intriga política House of Cards e de biografias - de Roosevelt, de Churchill, de Catarina, a Grande. "Nos últimos tempos anda mais preocupado com a sua própria biografia", diz um aliado. Pai de cinco filhos - entre os quais Luciana, advogada de 47 anos que trabalha com o prefeito petista de São Paulo Fernando Haddad e vê o processo de impeachment com reservas, Eduardo, de 17, fruto de relação com uma jornalista de Brasília, e Michelzinho, seis anos, do atual casamento - só é visto em eventos sociais com fim político. Bebe pouco - vinho ou Vermouth Camparo Punt Puro - e entretém-se a escrever poemas.
Em 2012 teve tempo para publicar Anónima Intimidade, reunião de poemas escritos em guardanapos de papel de aeroportos. O humorista (e muito mais) Millôr Fernandes disse um dia que os livros de José Sarney, também do PMDB, também vice alçado à presidência e também presumido escritor, eram, por si só, motivo de impeachment. Manuel Costa Pinto, crítico do jornal Folha de S. Paulo, não foi tão longe sobre Temer: "É um livro ruim", sentencia, e dá como exemplo uma homenagem a Jorge Luis Borges através de texto que, na realidade, o escritor argentino jamais escreveu.
No discurso de posse, apesar de rodeado de oportunistas e dos slogans à antiga brasileira, o novo presidente pediu uma pastilha e sorriu para apagar a imagem de "mordomo de filme de terror" e os boatos satânicos. E começou a trabalhar no dia seguinte - uma sexta-feira 13.