O 69.º Festival de Cannes começou sob o signo da nostalgia cinéfila: Café Society, de Woody Allen, evoca, em tom romântico, os bastidores de Hollywood na década de 1930.
Na conferência de imprensa de Café Society, primeiro filme (extraconcurso) da 69.ª edição do Festival de Cannes, o moderador Henry Behar, sempre dado a elaborada adjetivação na apresentação dos seus convidados, achou por bem simplificar quando chegou ao realizador. Bastou dizer: "Mr. Woody Allen."
Cannes tem essa capacidade de nos fazer sentir que, para lá dos brevíssimos rituais do glamour (obviamente obrigatórios neste contexto) ou de celebração das tecnologias (o Mercado do Filme anuncia, por exemplo, a promoção dos novos formatos "imersivos"), o que mais conta são as pessoas. Ou, se quiserem, os artistas: Woody Allen, por exemplo, na Côte d"Azur pelo segundo ano consecutivo (apresentou Homem Irracional em 2015), de novo fora de competição. E porquê? Porque se confessa avesso à própria ideia de competição entre trabalhos artísticos: "Vamos ter de escolher entre Rembrandt e El Greco?"
Apetece mesmo dizer que Café Society seria o mais bizarro dos candidatos à Palma de Ouro de Cannes, quanto mais não seja porque não se limita a abordar os anos 1930 de Hollywood. Quer mesmo "parecer-se" com um melodrama dessa época - nele encontramos, afinal, uma celebração nostálgica das histórias de amor que marcaram as filmografias de autores tão admiráveis como Howard Hawks, Preston Sturges ou George Cukor. Woody Allen disse-o de outro modo, lembrando que sempre se viu a si próprio "como um romântico".
A "revelação" de Kristen Stewart
Os atores constituem, como sempre, um trunfo decisivo. Kristen Stewart emerge como o caso mais exuberante e talvez não seja exagero considerar que Café Society lhe permite expor uma subtileza dramática e emocional que, definitivamente, a liberta de qualquer herança juvenil, ligada à sua passagem pela saga vampiresca de Twilight/ /Crepúsculo (estará também na secção competitiva, a liderar o elenco de Personal Shopper, de Olivier Assayas). Stewart surge no centro de uma teia amorosa que liga a sua personagem a um produtor de Hollywood e ao seu sobrinho, interpretados, respetivamente, por Steve Carell e Jesse Eisen-berg. O elenco inclui ainda as excelentes Blake Lively e Parker Posey, a par de Corey Stoll (um dos mais brilhantes secundários da atual produção americana que vimos, por exemplo, na série House of Cards).
A saborosa "antiguidade" de Café Society não pode ser dissociada de um curioso paradoxo. Trata--se, de facto, do primeiro filme de Woody Allen a ser rodado com as modernas câmaras digitais (ele que, a par de Martin Scorsese, tem sido um militante da utilização da película). Isto sem esquecer que as deslumbrantes imagens têm assinatura do italiano Vittorio Storaro, por certo um dos mais geniais diretores de fotografia de toda a história do cinema, três vezes "oscarizado" (por Apocalypse Now, Reds e O Último Imperador).
À espera de Jean-Pierre Léaud
Também presente na conferência de imprensa, Storaro fez questão de reforçar o ponto de vista de Woody Allen, quando este considerou que, para ele, o digital não implica nada de muito novo: a base tecnológica pode ser diferente, mas tudo parte do mesmo, isto é, do trabalho com "um ator e uma câmara". Para Storaro, enfim, o importante não é escolher uma técnica contra outra, mas sim conseguir uma ambiência fotográfica que sirva as especificidades da história que se está a contar.
Nos próximos dias, iremos descobrir 21 filmes a disputar a Palma de Ouro, envolvendo, por certo, propostas muito diferentes da mágoa romântica de Woody Allen. Ainda assim, não será abusivo considerar que a relação entre o "velho" e o "novo" irá pontuar vários momentos do certame, a começar pela apresentação de um longo documentário de Bertrand Tavernier sobre a história do cinema francês.
Porventura o acontecimento mais emblemático será, nesse campo, a homenagem a Jean-Pierre Léaud, símbolo da Nova Vaga francesa que esteve pela primeira vez na Croisette aos 14 anos, com Os 400 Golpes (1959), de François Truffaut. Léaud protagoniza A Morte de Luís XIV, do espanhol Albert Serra (coprodução que conta com a participação da empresa portuguesa Rosa Filmes), programado para uma projeção especial da seleção oficial. Além do mais, foi anunciado que na cerimónia de encerramento do festival (dia 22) Léaud receberá uma Palma de Ouro honorária, juntando-se, desse modo, a uma galeria de homenageados de Cannes em que encontramos, entre outros, Clint Eastwood, Manoel de Oliveira e Woody Allen.