Dilma diz que "a luta vai ser longa e demorada", no dia seguinte à aprovação do impeachment na Câmara dos Deputados
"É estarrecedor que um vice-presidente, no exercício das suas funções, conspire abertamente contra uma presidente mas o mundo e a história observam cada ato praticado neste difícil mas histórico momento", disse ontem Dilma Rousseff (PT), referindo-se a Michel Temer (PMDB), no primeiro discurso após a aprovação por 367 votos, mais 25 do que o necessário, na Câmara dos Deputados do processo de impeachment e consequente subida do processo ao Senado ontem à tarde, onde basta à oposição convencer uma maioria simples dos 81 senadores para destituir a presidente.
"Sinto-me indignada e injustiçada porque não cometi crime nenhum, não fiz nada que todos os meus antecessores não tenham feito, não desviei dinheiro público, não enriqueci ilicitamente, mas não vou desistir, a luta vai ser longa e demorada, vou até ao fim", prosseguiu.
"Ceticismo em relação a Temer é positivo para criar agenda realista"
Temer, que gravara um áudio para depois da votação posto a circular durante a semana passada, não disse nada ontem até ao fecho desta edição a não ser "é preciso cautela". O vice-presidente, de acordo com sondagem do Instituto Datafolha, é rejeitado tanto nas manifestações contra o impeachment como nos atos a favor - nas primeiras, 88% acham que o governo dele será mau ou péssimo; nos segundos, 68% não acreditam num executivo liderado pelo peemedebista.
Aécio Neves (PSDB), por seu lado, ganha agora protagonismo: como senador, escolheu o seu braço-direito Antonio Anastasia, também tucano, para presidir à comissão que vai votar o relatório do impeachment no Senado; e como presidente do partido negoceia participação no governo Temer mediante um acordo com 11 pontos já apresentado ao PMDB. "Não apoiamos o PMDB mas sim o projeto de salvação nacional, tudo depende do Michel", disse Aécio.
Temer já vai compondo o seu governo. Além dos ministros a partilhar pela base de apoio resultante da votação na Câmara, quer ter seis pastas, as da área mais económica, ocupadas por nomes de peso.
O "gangster Cunha"
Eduardo Cunha (PMDB) foi, como se esperava, protagonista da madrugada de votação na Câmara dos Deputados. Na qualidade de presidente da casa e de estratega do impeachment mas também enquanto réu da Lava-Jato e investigado noutros processos de corrupção, dos mais antigos, desde quando era parte do governo de Collor de Mello, aos mais recentes, como os Papéis do Panamá.
Foi chamado de "gangster de cuja cadeira sai enxofre", de "bandido", de "ladrão" e de "corrupto" por alguns. Outros disseram que a hora dele "está a chegar" e que "logo, logo estará atrás das grades". Mas, na verdade, o peemedebista saiu reforçado. O deputado da oposição Paulinho da Força (SD) disse mesmo que "por ter ajudado a derrubar Dilma ele merece ser amnistiado" na Comissão de Ética, onde responde a processo por falta de decoro por ter mentido ao parlamento sobre as contas que mantém na Suíça alimentadas pelo Petrolão. Cunha será segundo na hierarquia do estado se Temer assumir a presidência.
Susto pela TV
"Pelo casamento da minha filha", "em nome do grupão de amigos de Uberlândia", "contra o ensino de sexo a crianças na escola", "pelos maçons", "pelas mãos calejadas dos fumicultores e pela indústria fumageira", "pela família quadrangular evangélica", "contra o partido das trevas", "pela paz em Jerusalém", "pelos corretores de seguros", "por você, mamãe" - houve dedicatórias para todos os gostos de deputados que raras vezes aparecem na TV. Por isso, os brasileiros não os conheciam. E, por isso, se assustaram.
"Torcia pelo impeachment mas quando vi aquele show de horrores fiquei tipo "será que o país vai melhorar?"", perguntou-se a doméstica Mariângela Rossi que, como Anderson de Mello, vive em São Paulo, um dos estados mais anti-Dilma do país. "Reparou que o panelaço de ontem foi menos barulhento do que o de discursos normais da Dilma? Acho que foi porque ao ver aqueles deputados caímos na real...", lamenta-se Mello, médico pediatra.
Elogios ao torturador
Houve até um deputado que voltou ao palanque dez minutos depois para agradecer a avó: "Tinha-me esquecido dela senhor presidente da Câmara". Outro levou o filho e disse que, pela juventude, seria ele a declarar o seu voto pelo "sim". Eduardo Cunha não permitiu.
O senador Paulo Rocha (PT) tranquiliza os cidadãos. "Calma, agora no Senado o nível é outro, somos ex-governadores, ex-ministros, pessoas com outro nível, mais experientes, mais profundas". Menos profundas do que na Câmara é difícil, quando Tiririca (PR), o único palhaço profissional entre os deputados, se destaca pela sobriedade. "Eu voto sim", disse apenas. A dedicatória mais controversa, porém, coube a Jair Bolsonaro (PSC), militar de ultra-direita e candidato às presidenciais de 2018. Depois de elogiar o golpe militar de 1964 e a "brilhante condução dos trabalhos" de Cunha, declarou que votou por Carlos Brilhante Ustra, nada menos que o mais famoso dos torturadores, inclusive de Dilma, da ditadura militar.