A falta de planeamento da liderança política e militar dos Estados Unidos causou o colapso das forças de segurança afegãs, permitindo aos talibãs tomar o Afeganistão em 2021, indicou um supervisor independente do Pentágono.
O inspetor especial dos Estados Unidos para a Reconstrução do Afeganistão, John Sopko, que falava à imprensa para apresentar um relatório "demolidor" sobre os motivos do colapso das tropas afegãs após 20 anos de instrução militar e de fornecimento de armamento a Cabul, acrescentou às razões a "falta de vontade para fazer as coisas bem".
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O relatório afirma que a decisão do ex-presidente norte-americano Donald Trump (2017-2021) e do atual chefe de Estado, Joe Biden, de retirar os soldados dos Estados Unidos do país levou a uma reação em cadeia de decisões - dentro das várias agências de segurança do país, do então governo do ex-Ppresidente afegão Ashraf Ghani (2014-2021) e dos talibãs - "que acelerou os eventos" de agosto de 2021.
Nesse mês, assistiu-se ao colapso das forças de segurança afegãs, o que permitiu aos talibãs assumirem o controlo do país, numa altura em que os Estados Unidos concluíam a retirada até ao final de agosto.
No entanto, John Sopko referiu que houve uma série de problemas anteriores que já apontavam para esse desfecho.
Não havia ninguém no comando
Na conversa com os jornalistas, o inspetor especial norte-americano destacou que os Estados Unidos destinaram grandes quantidades de dinheiro para a formação das forças militares afegãs e para o desenvolvimento do país que "acabaram por ser desperdiçadas".
Frisou ainda a falta de coordenação, pois havia inúmeras agências norte-americanas envolvidas no Afeganistão sem ninguém para coordenar o trabalho conjunto: "Não havia ninguém no comando".
Para Sopko, quando alguém está num país "tem de entender onde trabalha", o que não acontecia com os Estados Unidos, dando como exemplo uma frase que ouviu inúmeras vezes no Afeganistão quando funcionários norte-americanos lhe diziam: "Ah, isso já o fizemos no Iraque".
Não percebíamos onde estávamos, não percebíamos a cultura, a política, não levávamos em conta a corrupção
"É incorreto, porque Iraque e Afeganistão são diferentes", frisou.
"Não percebíamos onde estávamos, não percebíamos a cultura, a política, não levávamos em conta a corrupção", enumerou Sopko, acrescentando que"também não foi levada em consideração" pelos Estados Unidos a "falta de sustentabilidade" das forças armadas afegãs, que foram desenhadas à sua imagem e semelhança.
Para o inspetor especial para a Reconstrução do Afeganistão, os soldados afegãos, por razões históricas, sabiam manejar e proceder à manutenção do armamento soviético, mas os Estados Unidos decidiram proporcionar-lhes equipamentos norte-americanos.
No relatório, o inspetor criticou também o sistema de rotatividade das forças norte-americanas, por "não ter sido eficaz", uma vez que, "a cada poucos meses", havia uma pessoa diferente nos cargos de decisão.
Em vez de um plano a 20 anos, o que aconteceu foram 20 planos em 20 anos
Nesse contexto lembrou "problemas com o cronograma" estabelecido pelos Estados Unidos para sair do país. "Foi um calendário irrealista para o sucesso, que tem de ser medido com base na realidade no terreno", ponderou.
Outra preocupação que incluiu no relatório é o equipamento militar que os Estados Unidos deixaram para trás quando abandonaram o Afeganistão. "O Afeganistão é conhecido por ser um bazar de armas, não sei se elas acabaram nas mãos dos talibãs", declarou.
Em resumo, nos 20 anos que os Estados Unidos estiveram no Afeganistão, "nunca houve uma estratégia de longo prazo" para criar umas "verdadeiras forças armadas".
"Em vez de um plano a 20 anos, o que aconteceu foram 20 planos em 20 anos", frisou.
Questionado sobre qual foi a maior surpresa com que se deparou durante a investigação, Sopko destacou que foi o "estado de negação" em que o então Presidente afegão se encontrava durante a retirada dos EUA.
"[Ashraf Ghani] estava a planear uma renovação urbana, enquanto os talibãs se apoderavam de território", explicou.
No entanto, apesar de todos os problemas que mencionou no relatório, Sopko admitiu não estar otimista quando à ideia de os Estados Unidos poderem ter aprendido com os erros cometidos.
"Aprender lições não está no nosso ADN", concluiu Sopko.