O atual e o ex-presidente da República envolveram-se, esta semana, numa troca de palavras sobre a questão da presença de familiares no Governo PS. Mas há um histórico anterior de picardias entre ambos.
Marcelo Rebelo de Sousa diz que é "um facto histórico" que foi Cavaco a dar posse ao Governo de António Costa, que tem quatro membros com relações familiares - os ministros do Mar e da Administração Interna, Ana Paula Vitorino e Eduardo Cabrita, casados, e o ministro do Trabalho e da Solidariedade José António Vieira da Silva, cuja filha, Mariana Vieira da Silva, subiu, na última remodelação governamental, de secretária de Estado a ministra da Presidência.
O anterior presidente não gostou de ver o seu nome chamado à liça por Marcelo e, na quarta-feira, disse que "não há comparação possível" entre o Governo a que deu posse em 2015 e o atual executivo, no que concerne às relações familiares. Marcelo não se ficou e, à noite, em Almada, voltou a responder a Cavaco: os nomes são os mesmos. "Nomeou pensando, bem, que eram competentes e ninguém lhe perguntou nem questionou na altura, como não o questionou até hoje. É um facto histórico, nomeou, nomeou", salientou, quarta-feira à noite. Esta troca de palavras não é inédita. O JN recorda-lhes outros episódios de picardias envolvendo Marcelo e Cavaco, umas mais às claras do que outras.
A crítica à "política-espetáculo"
No primeiro livro da biografia de Cavaco Silva, "Quinta-feira e outros dias", lançado em fevereiro de 2017, o ex-presidente da República deixou algumas indiretas ao seu sucessor no Palácio de Belém. "A política-espetáculo, tão cara a alguns políticos, por proporcionar notícias e fotografias, não traz qualquer benefício", escreveu Cavaco num dos 52 capítulos do livro de 592 páginas onde se propôs dar "público testemunho de componentes relevantes" da sua magistratura - desde que tomou posse como chefe do Estado, em 2006, ate ao dia em o primeiro-ministro socialista José Sócrates deixou o Governo, em 2011.
A "verborreia frenética" dos políticos
A 30 de agosto de 2017, numa intervenção na Universidade de Verão do PSD em Castelo de Vide, Cavaco Silva teve uma intervenção que foi interpretada como um recado à exposição frequente do atual presidente, sempre bastante disponível para falar aos jornalistas, ao contrário do estilo contido do anterior presidente. "Em França, não passa pela cabeça de ninguém que Macron telefone a um jornalista para lhe passar uma notícia ou uma informação", afirmou. O ex-presidente elogiou Macron por entender que "a palavra presidencial deve ser escassa", uma estratégia que "contrasta com a verborreia frenética da maioria dos políticos europeus dos nossos dias, ainda que não digam nada de relevante".
A estranheza de mudar a PGR
A 26 de setembro de 2018, Cavaco Silva criticou a decisão de não recondução da ex-procuradora geral da República, Joana Marques Vidal. "Sou levado a pensar que esta decisão política de não recondução de Joana Marques Vidal é talvez a mais estranha tomada no mandato do governo que geralmente é reconhecido como geringonça", disse, citado pela Rádio Renascença. Falando à margem de um congresso da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações (APDC), o ex-presidente da República considerou a não recondução de Joana Marques Vidal algo "muito estranho, estranhíssimo, tendo em atenção a forma competente como exerceu as suas funções e o seu contributo decisivo para a credibilização do Ministério Público". Um dia depois, o atual presidente não deixou passar essa declaração em branco. "Todos sabemos que quem nomeia as procuradoras-gerais da República são os Presidentes, não são os governos. Portanto, a nomeação da procuradora-geral da República foi minha e de mais ninguém", afirmou Marcelo Rebelo de Sousa, à margem da IV Cimeira do Turismo, deixando um claro reparo a Cavaco. "Entendo que não devo comentar ex-presidentes, nem amanhã quando deixar de o ser, nem futuros Presidentes, por uma questão de cortesia e de sentido de Estado", disse Marcelo.
Acordos escritos? "A geringonça afirmou-se"
A 6 de agosto de 2018, numa entrevista ao podcast de Daniel Oliveira "Perguntar não ofende", o atual presidente da República afirmou que não vai exigir a assinatura de acordos escritos entre partidos que, à esquerda ou à direita, possam no futuro vir a apoiar uma solução de Governo, ao contrário do que exigiu Cavaco Silva para dar posse ao Governo de António Costa em novembro de 2015. "Não me parece essencial haver acordo escrito por uma questão de princípio, mas também não me parece essencial haver acordo escrito porque as dúvidas que se poderiam formular sobre o acordo escrito acabaram por ser resolvidas pela prática da fórmula política." De acordo com o chefe de Estado, a atual solução, em que o Governo minoritário do PS é suportado por acordos escritos -- designados de posições conjuntas - com o BE, o PCP e o PEV - "afirmou-se" e "sobreviveu".
A "falta de gosto" de não apoiar Saramago
Nos 20 anos da entrega do prémio Nobel a Saramago, o presidente da República classificou de "falta de senso e falta de gosto" o veto governamental, em 1992, da candidatura da obra de José Saramago "O Evangelho sobre Jesus Cristo" ao Prémio Literário Europeu, recordando que selou as pazes com o escritor com um abraço numa praça de Madrid. No congresso que celebrou os 20 anos de atribuição do Prémio Nobel da Literatura, a 8 de outubro de 2018, em Coimbra, Marcelo lembrou que a decisão do Governo de então, liderado por Cavaco Silva, foi o empurrão que faltava para que Saramago decidisse zarpar de Portugal para Lanzarote.