Uma mulher vítima de violência doméstica foi condenada em primeira instância, no tribunal de Loures, a 800 euros de multa ou 26 dias de prisão pelo crime de abuso e simulação de sinais de perigo por acionar o botão de pânico (teleassistência) ao sentir-se ameaçada pelo ex-marido.
Agora, o Tribunal da Relação de Lisboa anulou a sentença, com duras críticas à juíza e ao Ministério Público (MP), porque a decisão era "contra a prova produzida" e o alerta da mulher era justificado.
Os factos reportam-se ao final de janeiro de 2017, quando a mulher foi ao Loures Shopping buscar o filho que tinha passado o ano com o ex-marido. Já com o menor, apercebeu-se de que o ex-marido a seguia e teve medo de que ele a abordasse ou a seguisse até casa. Entraram em discussão, o que obrigou à intervenção dos seguranças. Por isso, acionou a teleassistência que o tribunal lhe atribuíra há ano e meio, num processo de violência doméstica em que está acusado o ex-companheiro.
Recebido o alerta, foi avisada a PSP, que enviou três viaturas. Mas os agentes acharam que a mulher só queria uma boleia até casa. Foram embora, registando o incidente segundo a sua interpretação. Ou seja, que a mulher acionou os meios de socorro "sabendo que deles não necessitava" e que "os mesmos poderiam ser necessários para auxiliar alguém que deles realmente precisasse", como foi dado por provado pela juíza que a condenou. Uma prima da vítima testemunhou que ouviu os agentes dizer que "a PSP não era serviço de táxi". O caso acabaria por dar origem a um inquérito em que a mulher foi acusada pelo MP e que seguiu para julgamento.
Nas audiências, os seguranças confirmaram o desacato, mas os agentes relataram que a mulher "não disse que estava em perigo, não disse que havia sido ameaçada, queria apenas que a PSP a levasse a casa", porque receava o ex-marido, sentindo medo por ela e pelo filho. Para a juíza, ficou provado que "a arguida sabia que não estava em perigo e que não tinha qualquer motivo para acionar o sistema de teleassistência", condenando-a.
Entendimento "inaceitável"
A vítima recorreu e a Relação deu-lhe razão, por achar que houve "manifesto erro na apreciação do prova". "Dizer que a arguida utilizou abusivamente um sinal ou chamada de alarme ou socorro simuladamente é extremamente grave, desproporcional e inaceitável, considerando que estamos a falar de uma vítima de violência doméstica, sinalizada e acompanhada por vários técnicos", refere o acórdão, assinado por dois juízes. Os magistrados consideraram "inaceitável" o entendimento e as declarações proferidas em tribunal e "calmamente aceites" de que a violência verbal não é geradora de insegurança, de perigo ou de medo que justifique o recurso à teleassistência".
Além disso, prosseguem, "é ainda fundamental" não esquecer que, ao ter teleassistência, a mulher é considerada pelo tribunal uma vítima de violência doméstica para quem essa proteção era imprescindível e não pode ignorar "as razões e os objetivos subjacentes" à concessão dessa proteção. Os desembargadores frisam que o "tribunal [primeira instância] tem obrigação de compreender o fenómeno da violência doméstica" e "colaborar no esforço nacional e internacional para combater essa praga".
Como tal, só porque a arguida não disse "que estava em perigo" ou "que havia sido ameaçada", não se pode concluir que não se sentiu em perigo ou ameaçada. Mais ainda quando a própria, em audiência, declarou sentir-se "insegura, em perigo ou com medo". Por isso, a Relação decidiu anular a condenação e absolvê-la.