Pela primeira vez em Portugal, associação lança uma campanha de dimensão nacional para recolha de gâmetas
A Associação Portuguesa de Fertilidade (APF) vai lançar pela primeira vez uma campanha junto de universitários a apelar à doação de espermatozoides e óvulos. Uma iniciativa que deverá arrancar já na próxima semana mas que, pela delicadeza do tema, não teve qualquer divulgação pública. É até com notórias cautelas que Marta Casal, da direção desta entidade, responde às perguntas do DN. A partilha de óvulos e espermatozoides com casais que não podem ter filhos sem esta ajuda continua a ser um tópico difícil de abordar em Portugal. Mesmo para quem o acompanha no dia-a-dia.
"Achamos sempre que este é um tema tabu ainda, infelizmente", assume. "Ainda que haja pessoas disponíveis para o fazer, há sempre falhas, falta de informação. Há sempre uma concentração da infor- mação nas clínicas", acrescenta, explicando que foi também por isso que a associação considerou "importante fazer esta campanha".
Para já, nesta campanha, está assegurada a participação das Universidades de Lisboa, Nova de Lisboa e do Porto, três das maiores do país. Um bom ponto de partida: "Muitas universidades não nos deram autorização mas esperamos que possam ainda decidir aderir quando a campanha arrancar", diz. Os objetivos, para além do óbvio - recrutar potenciais dadores de gâmetas entre uma população que, do ponto de vista reprodutivo, está na idade ideal -, passam também por "ajudar a que as pessoas com dúvidas possam ser esclarecidas. E que saibam aonde recorrer".
"Bocadinho de mim" para ajudar
J., 27 anos, estudante brasileira, sabe por experiência própria que este é um tema difícil de introduzir numa conversa. Recentemente, completou um ciclo de doação, numa clínica, depois de ter falado com uma amiga que lá trabalha. A colheita acabou há três semanas. Durante todo o processo, mais do que o tratamento em si, que diz ter sido tranquilo, teve dificuldades em explicar a decisão a algumas pessoas próximas.
"Eu encaro tudo isto de forma natural. Sou estudante de enfermagem, tenho uma mente mais aberta. Já tenho um filho e a minha motivação foi poder ajudar outras pessoas a terem o seu", explica. "Há pessoas que pensam: "Há um filho meu por aí." Eu penso que é um bocadinho de mim com o qual estou a ajudar outras pessoas a terem o seu filho."
Mas o que ouviu ao longo deste tempo, assume, acabou por levá-la a preferir não partilhar a sua decisão com muita gente: "Há alguma reserva no sentido de associar muito a doação como se fosse o próprio filho. "Vai-se parecer comigo, vou encontrá-lo na rua e pensar será que é meu." Foram os comentários que fizeram comigo as pessoas com quem falei."
Os últimos dados disponíveis, que datam já de 2013, referem um total de 150 bebés nascidos graças a doações de gâmetas. Hoje o número será já bastante superior. E a estudante J. já deu o seu contributo para essa estatística.
Atualmente, de acordo com a APF, existem no país 750 dadores registados. Marta Casal diz não ter os dados relativos à proporção de homens e mulheres neste grupo mas assume que é muito mais fácil encontrar voluntários no sexo masculino, até porque "o processo é muito mais simples". "No homem, basta fazer a recolha do esperma, rapidamente e sem qualquer processo invasivo", explica. As mulheres têm de se submeter a um processo de estimulação ovárica, com injeções subcutâneas, que dura pelo menos dez dias, e no final existe ainda uma intervenção cirúrgica, num processo chamado punção ovárica, para "aspirar" os ovócitos libertados.
As contrapartidas também são muito diferentes. Por recomendação do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, foi adotada uma tabela fixa, que vale tanto para o setor público, onde também já existe desde há alguns anos um banco de recolha de gâmetas, como para o privado: as mulheres recebem o equivalente a 1,5 vezes o indexante dos apoios sociais, o que atualmente se traduz em cerca de 630 euros, por cada ciclo completo. Podem fazer até três, espaçados entre si por pelo menos seis meses. Aos homens são pagos cerca de 40 euros por donativo e podem fazer quantos quiserem, desde que o seu esperma não dê origem a mais de oito nados-vivos.
Do ponto de vista legal, este serviço é considerado um "ato benévolo" e os valores são considerados apenas uma compensação pelo tempo e encargos que assumem ao participar no processo. Mas a clínica IVI de Lisboa - de um grupo espanhol que atualmente lidera este setor a nível mundial - assumiu ao DN que o aspeto financeiro "continua a ser um dos fatores" que atraem potenciais dadores aos seus serviços.
Mas há outros, garante Filipa Santos, psicóloga do IVI Lisboa, que acaba também de lançar uma campanha nas redes sociais: "De uma forma geral a motivação para a doação é uma conjugação de fatores. Nos últimos anos, os nossos dadores estão bastante mais sensibilizados para a problemática da infertilidade", diz. "Nalgum momento das suas vidas já se cruzaram com alguém com dificuldades reprodutivas, ou interessaram-se pelo tema porque leram uma notícia ou viram um filme, pesquisaram e chegaram até nós. Outros vêm porque uma amiga ou amigo doou e falou-lhes no processo e ficaram interessados."
Apesar de todas as reservas que o tema ainda provoca, tanto entidades públicas como privadas confirmam que o número de dadores tem vindo a crescer gradualmente. Mas continua a ser muito deficitário face à procura, com as mulheres maiores de 40 anos a constituírem o grupo que mais recorre à ajuda médica para ter filhos.