Reabilitação. Câmara de Setúbal já aprovou a abertura de um processo para classificação da Casa da Quinta da Comenda, na serra da Arrábida, como imóvel de interesse municipal. Palácio recebeu personalidades internacionais
Verão de 1965. A Casa da Quinta da Comenda, em plena serra da Arrábida, recebia dois dos seus mais ilustres visitantes. Lee Radziwill, irmã de Jacqueline Kennedy, viúva do presidente norte-americano J.F. Kennedy, e o seu inseparável amigo, o escritor Truman Capote. Era habitual a família Armand ceder a casa - conhecida como Palácio da Comenda - a personalidades ilustres do círculo da melhor aristocracia europeia e portuguesa. Afinal, a quinta estava debruçada sobre uma das "melhores costas mediterrânicas", comparada à época com a Sardenha ou a Côte d"Azur, mas com a vantagem de oferecer os mesmos esplendores estivais num ambiente "muito mais pacato e tranquilo".
Estas revelações são feitas agora no memorando técnico relativo ao processo de classificação da Casa da Quinta da Comenda promovido pela Câmara de Setúbal, que ambiciona recuperar o imóvel após um abandono de décadas que levou o célebre e imponente palácio, erguido em terrenos banhados pelo rio Sado, a mergulhar em acelerada degradação. Em causa estão 242 hectares a dois quilómetros da cidade.
O acesso é livre, tanto pela estrada como pela praia, onde existe um portão sempre aberto junto ao areal, bastando subir a escadaria para encontrar portas e janelas (as que ainda existem) totalmente escancaradas. O vandalismo e as pilhagens trataram do resto. Quase nos remete para um cenário ideal à realização de um filme de terror, com portas interiores a ranger e a bater com estrondo empurradas pelas correntes de ar. Está à venda por 45 milhões de euros há muito tempo, segundo a agência imobiliária Your Place, e ainda pertence à família Xavier de Lima, que comprou o imóvel na década de 1980 aos Armand. Com a morte do empresário António Xavier de Lima veio o abandono.
A autarquia assume ser chegada a hora de pôr um ponto final na degradação e já aprovou a abertura de um processo para classificação do edifício como imóvel de interesse municipal, esperando que a expectativa da Direção-Geral do Património Cultural "venha a considerar a Casa da Quinta da Comenda como bem cultural com interesse supramunicipal e, como tal, suscetível de merecer uma classificação superior".
O processo de classificação descreve que a quinta foi projetada como casa de veraneio em 1903, por encomenda do conde Abel Henri Armand. "É um edifício de características artísticas e arquitetónicas notáveis, com um enquadramento paisagístico único no conjunto da obra concebida pelo arquiteto Raul Lino", assinala, sublinhando ainda que além da qualidade estilística, a motivação do processo de classificação tem em conta "os materiais e sistemas construtivos empregues, assim como os jogos volumétricos e códigos formais de expressão tradicionalmente portuguesa".
Muitos dos painéis azulejares, da autoria do ceramista José António Jorge Pinto, estão em estado de degradação entre as diferentes áreas do edifício. Uns foram vandalizados outros furtados. Nenhum escapou à ação da mão humana, mas a existência de fotografias dos painéis poderá viabilizar a sua reprodução. Quase na totalidade. Mas nem tudo são más notícias rumo à conservação, já que os estudos admitem haver obras "descaracterizadoras mas reversíveis".
Origens na época romana
A história da quinta remonta à época romana, segundo aponta o memorando técnico com base nos vestígios encontrados na região. Aliás, revela o documento que na serra da Arrábida existem ainda vestígios de "numerosas cetárias", tanques retangulares destinados à salga de peixe e marisco.
Bem mais tarde havia de aqui nascer a torre de vigia de Mouguelas (cariz medieval) e já no século XIX uma primeira casa de habitação, construída sobre a própria estrutura abaluartada da Plataforma de São João. Seria no dia 9 de março de 1872 que o então ministro de França em Lisboa, o diplomata Abel Henri Armand, adquiria a propriedade pela quantia de "cinco contos de réis".