Apesar de os estudos indicarem que o avião é o meio de transporte mais seguro – no ano passado houve zero acidentes com vítimas mortais no universo das 243 companhias que integram a IATA - estima-se que cerca de 25% dos adultos tenham fobia de voo. Mas é possível ultrapassá-la. Pilotos, psicólogos e engenheiros integram grupos de apoio para que o medo desapareça.
O coração dispara, as mãos começam a suar, uma dor intensa crava-se no peito e impede a respiração. Depois chegam as tonturas, a cabeça a andar a roda e uma frase paira no ar: «Vou morrer. Tenho que sair daqui, já!». A situação não é de perigo nem se trata de uma emergência médica mas, para quem tem fobia de voo, é tão real que só se afigura uma solução: o evitamento total. Acabam-se as viagens de avião a título profissional, deixa de haver férias em família em pontos distantes do globo e, segundo os especialistas, entra-se numa espiral de ansiedade que muitas vezes leva as pessoas a ficarem décadas sem andar de avião, mesmo tendo condições financeiras para o fazer.
Foi o que aconteceu a José Maria Tallon. Sempre encarou o avião como um mal necessário, uma forma «de ir em tempo útil de um sítio para o outro». Mas a rapidez da deslocação foi sendo progressivamente substituída por uma ansiedade intensa: «Era normal, num voo para o Brasil, perder dois quilos no caminho. Durante muito tempo sofri com esta situação». Até que neste último ano as coisas se agravaram ao ponto de o médico arranjar desculpas para se furtar às viagens aéreas, deixar de ir a congressos, ou passar a fazer regularmente, de carro, Lisboa-Madrid-Barcelona. «No passado mês de Março foi a primeira vez em 20 anos que não fui ao Salão do Automóvel de Genebra». José Maria Tallon chegou a ir até ao Porto, onde embarcaria com amigos, mas à última hora não foi capaz de dar esse passo. Um mês depois, tinha outra viagem marcada, desta vez para o Brasil, com a família, mas preferiu adiá-la. Foi então que decidiu procurar ajuda.
Zita Torrão, engenheira civil, passou pelo mesmo. «Um dia, numa viagem de trabalho para Milão, fui como sempre bem e, na volta, assim que o avião descolou, o coração disparou, as pernas não paravam de tremer, o ar não chegava, queria sair e sabia que não podia! O que se passou? Não sei, estava com as pessoas com quem tinha ido, não havia turbulência, a tripulação ‘passeava-se’ com toda a tranquilidade! Só sei que ansiei que o voo terminasse o mais rápido possível. Nem almocei com medo de me engasgar». A fobia instalou-se ao mesmo tempo que as viagens de trabalho se acumulavam. Zita rendeu-se aos ansiolíticos mas percebeu que a solução não estava nos comprimidos e, tal como Tallon, procurou ajuda.
«Estou em Moçambique e devo-o à equipa da Ganhar Asas!», atira José Manuel Delgado, referindo-se ao programa da TAP para passageiros com fobia de voo. A sua história não é muito diferente das de Tallon ou de Zita, que também passaram pelo mesmo curso. Após umas férias no Funchal, José não conseguiu voltar a embarcar para Lisboa. «Sempre voei normalmente em viagens de médio e longo curso, até que um dia, no final de Janeiro 2007, numa viagem de lazer ao Funchal não consegui encarar a realidade de ter de voltar de avião para casa. Até ao presente não sei o que se passou ou qual a origem desse bloqueio. O facto é que a minha mulher voltou e eu fiquei lá sozinho e só consegui arranjar solução alternativa, quase milagrosamente, dois dias depois: vim num cargueiro de transporte de contentores com destino a Leixões». Antes de integrar o curso da TAP, José ainda fez um autêntico périplo por médicos. Esteve seis meses em consultas de psiquiatria, tomando antidepressivos. Mais um ano a fazer psicanálise procurando a origem do problema com recurso a regressão psicológica e hipnose. Rendeu-se a calmantes para entrar em aeronaves e até alugou um Cessna para fazer um voo de uma hora sobre a cidade do Porto. Nada resultou.
Sofia Rodrigues, de 31 anos, sabe bem o que é isso. Numa viagem à Suíça para ver a família foi confrontada com um ataque de pânico. «Durante o tempo todo pensei que o avião ia ter um problema qualquer e que íamos cair, ao menor barulho eu saltava e chorava, muitas vezes o que me assustava era somente as pessoas a caminhar no corredor, a tripulação a comunicar entre si ou qualquer outra coisa inofensiva. Durante toda a viagem, fui agarrada à cadeira e só pensava como é que iria voltar para casa». O voo para Lisboa ainda foi pior e quando aterrou jurou nunca mais pôr os pés num avião. Não cumpriu a promessa e numa viagem à Madeira, passados uns anos, voltou a ter os mesmos sintomas. Até que um convite para ir à Tailândia a convenceu a procurar ajuda. Integrou a consulta de Fobia de Voo, com a psicóloga Cristina de Albuquerque e a seguir fez o curso Voar Sem Medo, na Clínica Dr. Afonso de Albuquerque, em Lisboa. «Durante aqueles dias pude expor os meus medos sem me sentir envergonhada, senti-me entre amigos, pois os meus medos e dúvidas eram os mesmos que os de outros colegas de curso e isso deixou-me à vontade para perguntar tudo aquilo que queria ver desmistificado, coisas que me aterrorizavam. Finda a teoria veio o grande desafio, o voo terapêutico». Uma semana depois embarcou para a Tailândia e para um périplo que incluía oito percursos aéreos: «Voo após voo estava cada vez menos ansiosa, ao ponto de adormecer…».
Fobia ou medo?
Os psicólogos são bastante peremptórios na distinção entre fobia e medo. Elizabete Santos, do programa Ganhar Asas da TAP, esclarece: «O medo é uma resposta emocional que é adaptativa. Nós nascemos preparados para ter medo de algumas coisas e esse medo é protector enquanto indivíduos e assegura-nos enquanto espécie humana». Já as fobias «são adquiridas ao longo da nossa vida. Ninguém nasce com fobias, adquirem-se por diversas vias e, ao contrário do medo, não são adaptativas, são desadaptativas porque limitam a pessoa. Deixa-se de conseguir fazer coisas que era suposto conseguir fazer. Fica-se cada vez mais fechado, mais prisioneiro daquela fobia». Por isso o grande objectivo dos cursos é provar às pessoas que andar de avião não é perigoso, uma vez que a fobia surge quando uma situação é avaliada erroneamente como perigosa.
Os números ajudam a provar que o avião é, de facto, o meio de transporte mais seguro do mundo. No ano de 2012, no universo IATA (Associação Internacional de Transporte Aéreo), do qual fazem parte 243 companhias aéreas, de um total de 376, não houve nenhum acidente com vítimas mortais. E estimam-se que haja três mil milhões de voos por ano. Este ano, a TAP ficou em sétimo lugar a nível mundial, e em segundo a nível europeu. «A companhia aérea que ficou em primeiro lugar foi a Finnair [finlandesa], que faz a sua manutenção na TAP», explica o comandante João Roque. E adianta que a companhia portuguesa só não ficou em primeiro lugar pela idade dos aviões – «mas atenção: aviões mais antigos não significa que não sejam seguros».
Uma das bases dos cursos para vencer a fobia do voo é dar a conhecer estas estatísticas de segurança, além de pôr os pacientes em contacto com os principais agentes que intervêm no transporte aéreo: comandantes, engenheiros, tripulação de cabine e controladores aéreos.
Elizabete Santos, do Ganhar Asas, explica que o programa assenta na informação técnica, em formas de gestão da ansiedade e finalmente na exposição gradual ao contexto de voo. «Não é eficaz pegar nas pessoas e pô-las dentro de um avião sem elas terem ganho esse à vontade», explica. Por isso, com a TAP, os participantes têm ainda acesso ao mock up (uma réplica da cabine do avião), ao hangar e ao simulador antes de fazerem o voo terapêutico com os profissionais. «Os participantes, no primeiro dia, depois de terem técnicas de gestão da sua ansiedade, fazem esta primeira aproximação, num cenário muito semelhante ao do avião, só que não abana nem sai dali. As pessoas vão sentar-se nas cadeiras, que são iguais às dos aviões, vão ficar ansiosas, naturalmente, mas depois vão fazer uma sessão de relaxamento e aprender que podem estar naquele contexto de forma mais tranquila», explica a psicóloga. Depois desta primeira fase há uma visita ao hangar: «As pessoas entram ali e de algum modo começam a sentir-se mais confortáveis, mais à vontade com o avião, podem ir ao cockpit ver os instrumentos de navegação e explorar o avião».
O passo seguinte é a visita ao simulador. Aí o comandante João Roque não poupa os participantes a tudo o que pode correr mal num avião, só para provar que mesmo nessas condições o avião não sucumbe à tragédia. «Fazemos uma volta sobre Lisboa a baixa altitude, nessa volta pomos as piores situações de turbulência que possam ser imaginadas, com granizo a cair, no meio disso cortamos um motor, fazemos a aproximação só com um motor, com ventos extremos, e na fase final, em que estamos quase, quase a tocar na pista, eu descontinuo a aproximação – uma situação em que o avião é mais difícil de ser pilotado. Voltamos a levantar, re-arrancamos o motor e depois pomos situações de ventos extremos muito acima dos limites do construtor – estamos a falar de ventos de 100 km/h – e fazemos a aterragem nestas condições». Tudo isto para mostrar aos passageiros que embora haja limites mais baixos, ainda assim o avião é pilotável. Depois desta experiência, é expectável que o voo terapêutico que a TAP promove até Madrid seja pêra doce e a verdade é que 96% dos participantes do curso aceitam embarcar.
A mesma percentagem de sucesso tem a psicóloga Cristina Albuquerque no seu programa Voar Sem Medo. Apesar de não ter acesso ao simulador nem ao mock up, os seus passageiros contactam igualmente com a equipa técnica da operação aérea, controladores incluídos. Mas o que Cristina destaca é a importância da abordagem cognitiva-comportamental. «Parte-se do princípio que aquilo que pensamos, aquilo que sentimos e como nos comportamos está muito interligado. E quando aquilo que pensamos está errado ou é inapropriado, a pessoa sente-se mal na situação, logo é incapaz de se comportar de uma maneira inadequada». A psicóloga acrescenta: «A abordagem cognitiva-comportamental vai incidir na mudança dos comportamentos que estão a manter o processo fóbico e alterar também a forma de pensar em relação a determinadas coisas: em relação à viagem aérea e à conotação de perigo que se atribui a essa viagem».
Há 22 anos neste campo, Cristina explica que para o tratamento da fobia de voo há ainda duas vertentes da intervenção muito importantes. Uma dedica-se à explicação dos tais aspectos técnicos, enquanto a outra diz respeito ao controlo da ansiedade, através de mecanismos psicológicos. Até porque, quando existe fobia, a pessoa pode ter a informação correcta, mas na hora de apanhar o avião é a sua parte irracional que mais ordena. «Quando a pessoa tem uma fobia, a reacção é automática. Ao chegar ao aeroporto, ou até antes, já está aflita, apesar de ter toda a informação. Aí entra a outra parte do programa que tem a ver com a abordagem psicológica para que consiga controlar a ansiedade para níveis em que seja possível racionalizar a situação». Técnicas de respiração e relaxamento revelam-se eficazes para controlar a tensão.
A psicóloga aconselha as pessoas a fazer tudo com muita calma, a ir para o aeroporto com antecedência, a levar coisas que as distraiam e a ter um comportamento que não seja de evitamento: «Muitas pessoas não falam nem querem que ninguém fale com elas porque querem ouvir os todos os ruídos, ou então não se levantam, não se mexem, não comem… Todos estes comportamentos têm de ser alterados». E para ajudar os pacientes em futuros voos, a psicóloga, juntamente com a Valk Foundation – um dos primeiros centros especializados no estudo e tratamento da fobia de voo –, desenvolveu uma aplicação de telemóvel com informação sobre o que as pessoas devem fazer antes da partida, na descolagem e durante o voo. Tem informação sobre a turbulência, estatísticas sobre segurança, informações sobre o medo e ainda dois exercícios áudio de relaxamento.
«E se a pessoa estiver mesmo muito aflita, tem uma tecla para o pânico e aí ouve uma gravação minha para a acalmar», acrescenta a terapeuta. O sucesso é tanto que a aplicação está a ser adaptada para português do Brasil. Terminado o curso, Cristina faz ainda um acompanhamento de cada paciente durante dois anos, avaliando o nível de ansiedade antes e durante o voo.
Com uma taxa de sucesso de 96%, a psicóloga já foi responsável por resolver alguns casos bem emblemáticos, como o de uma adolescente que foi passar férias com o pai aos Açores e durante quatro anos não conseguiu voltar para a casa da mãe, em Lisboa. Ou o de um trabalhador que durante seis anos foi para Marrocos de carro, uma vez por semana. Ou ainda o de uma senhora que tinha um quadro fóbico tão grave que, até para ir do Estoril, onde morava, a Lisboa, tinha de ser acompanhada pela mãe. Hoje vive em Miami com o marido (só este ano fez a viagem Lisboa-Miami 11 vezes)…