O inquérito da Ordem dos Médicos traz detalhes demolidores sobre a forma como foi gerido o surto de covid-19 no lar de Reguengos de Monsaraz, que matou 18 idosos. Veja o que diz o relatório.
O documento produzido por uma comissão designada pela Ordem dos Médicos para apurar o que aconteceu no lar da Fundação Maria Inácio Vogado Perdigão Silva (FMIVPS), em Reguengos de Monsaraz, está a provocar polémica, com os partidos a exigirem ao Governo mais esclarecimentos. Eis alguns pontos apontados no relatório, consultado pelo JN.
Camas juntas e wc's partilhados
Três dias depois de ser conhecido o primeiro caso positivo no lar (a 17 de junho) e de já estarem diagnosticados 50 infetados, ainda havia idosos à espera de resultados dos testes "misturados" com doentes nos mesmos quartos. As casas de banho eram partilhadas e os utentes não usavam qualquer tipo de máscara, diz o relatório da Comissão de Inquérito da Ordem dos Médicos.
Calor, lixo e urina no chão
Uma equipa médica que se deslocou aos quartos dos utentes a 23 de junho, ouvida pela comissão de inquérito, descreveu "quartos de 4 ou 5 camas, numa parte do edifício antigo, degradado, com calor extremo, cheiro horrível, lixo no chão, vestígios de urina seca no pavimento". Os doentes deitados "em camas quase lado a lado" estão "desidratados, desnutridos, alguns com escaras com pensos repassados, alguns só usando fralda, completamente desorientados".
Doentes sem insulina e outros fármacos
Do ponto de vista clínico, o relatório refere que "vários doentes estiveram alguns dias sem fazer a terapêutica habitual por não haver ninguém que a preparasse ou administrasse". Em causa estavam fármacos importantes como a varfarina (usada na prevenção de tromboses) e insulina (para diabéticos) por "falta de canetas". As equipas médicas terão tentado fazer ajustes às terapêuticas, face ao estado de desidratação de alguns doentes, mas como "a medicação era toda preparada para vários dias e não estando identificada, não era possível retirar um comprimido", ou se deitava tudo fora e não faziam a medicação ou faziam o que estava na prescrição habitual, pode ler-se no relatório.
Condições más e falta de profissionais
As condições precárias do edifício e a falta de recursos humanos impossibilitaram a prestação de cuidados adequados no lar. Os funcionários eram poucos e a situação agravou-se quando testaram positivo e ficaram em casa. A decisão de separar os circuitos "limpos" e "sujos", tomada 9 dias após o primeiro caso, levou ao alojamento das equipas num andar e dos utentes noutro, o que dificultou ainda mais a separação das camas.
Rastreio lento facilitou contágio
O rastreio aos utentes e profissionais do lar - desde a primeira zaragatoa até aos resultados de todos os testes - demorou quase três dias, criando-se condições para a "rápida disseminação" do vírus.
Falência renal causou mortes
Alguns doentes infetados no lar morreram por pneumonia covid-19, mas "a maioria acabou por falecer devido à deterioração do seu estado geral, nomeadamente insuficiência renal por atraso na referenciação hospitalar", refere o documento.
Autoridades avisadas mas não foram ao local
O relatório realça que as equipas médicas alertaram "sistematicamente" as autoridades competentes da falta de condições para tratar os doentes de acordo com as boas práticas clínicas. A 27 de junho, o presidente da ARS Alentejo foi chamado ao lar para "verificação das más condições existentes", mas a responsabilidade foi delegada no diretor clínico do ACES. O líder da ARS, José Robalo, afirmou ontem, ao DN, que foi ao local duas vezes mas nunca chegou a ver as condições dos utentes por não ser esse o seu papel. Segundo o relatório, a autoridade de saúde pública local (Delegado de Saúde coordenador) não visitou o lar por pertencer a um grupo de risco (mais de 70 anos) e delegou a missão numa enfermeira do hospital de Évora.
Transferência "tardia" para multiusos
A transferência dos utentes do lar para um pavilhão multiusos - a 3 de julho - melhorou as condições para tratar os doentes, mas pecou por tardia, conclui o inquérito.