A escritora Agustina Bessa-Luís morreu domingo, no Porto. Estava doente há mais de uma década, na sequência de um AVC, que a retirou da vida pública.
O corpo vai estar em câmara ardente a partir das 10.30 horas de terça-feira na Sé do Porto, onde se realiza uma cerimónia às 16 horas. O funeral será na quarta-feira, na Régua.
Há muito entronizada como uma das vozes incontornáveis da literatura de língua portuguesa, Agustina Bessa-Luís - que domingo faleceu, aos 96 anos, - não precisou de ver aplicada a fórmula que em tempos ela mesmo enunciou sobre a posteridade: "Em regra, só 50 anos após o desaparecimento físico do autor é que dá para aperceber da real dimensão da obra. Às vezes, até é necessário mais tempo".
Poucos ficavam indiferentes à grandeza de Agustina, "um dos dois escritores verdadeiramente geniais (o outro era Fernando Pessoa) que Portugal produziu no século XX", como escreveu António José Saraiva numa célebre carta dirigida a Óscar Lopes.
Mesmo os que não cultivavam especial simpatia pelo seu universo literário ou até pelas suas posições públicas, frequentemente desconcertantes, reconheciam-lhe traços de génio.
"A ETERNA INSUBMISSA"
Autora de uma biografia sobre Agustina com a chancela da Contraponto, Isabel Rio Novo defende que a romancista "foi sempre uma voz incómoda": "Não andou pelo mundo como quem contempla uma paisagem. Recusava-se a seguir a via mais fácil. Basta dizer que se demarcou do feminismo e questionou a Revolução de 1974, em contraciclo com as opiniões dominantes". Mais do que coragem, essas posições desassombradas "eram um traço idiossincrático", adianta, revelador de "um espírito de liberdade, convicções fortes e elevado sentido de exigência ética e estética".
O AVC sofrido há mais de uma década afastou-a da vida pública, mas não rasurou a sua importância na história da literatura, reconhecida por autores de diferentes gerações.
António Lobo Antunes fala de "uma escritora do tamanho de George Eliot ou Jane Austen", Gonçalo M. Tavares louva a "grande e gloriosa Agustina" e Bruno Vieira Amaral, por sua vez, refere-se à autora duriense como "a eterna insubmissa". "Para ela, a literatura, mais do que uma novidade, foi quase um destino. Há pessoas que se cumprem completamente naquilo que fazem. É o caso dela", reitera.
Se, tal como aconteceu com o seu cúmplice Manoel de Oliveira, foi "mestre sem discípulos", pelo menos diretos, isso deveu-se mais ao seu individualismo do que a um défice de influências.
"A mais rebelde das escritoras portuguesas", como já a definiu Pedro Mexia, não precisou de suavizar o seu estilo indómito ou fazer concessões para conquistar a admiração dos seus pares e dos leitores.
Nos seus romances, dos mais conhecidos "A Sibila" e "Fanny Owen" aos discretos "Ordens Menores" e "Memórias Laurentinas", encontramos um "mundo fechado", não por acaso o título do primeiro livro que publicou, quando tinha 26 anos. "Nesse universo fortemente estratificado, regido por normas rígidas, a realidade que Agustina invoca é instável. O que parece verdade torna-se oscilante, como um mundo às avessas onde nada é a preto e branco", explica Isabel Pires de Lima, professora catedrática que sublinha "a ironia ao serviço da ação subversiva" nos livros da escritora. A também professora universitária Ana Paula Coutinho destaca, por sua vez, "o lema de Montaigne pelo qual se regeu: quanto mais pessoal, mais universal".
NOBEL? "SÓ O DA PAZ"
Em 1948, Agustina aterrou como um OVNI no meio literário português. A sua autoconfiança, muitas vezes interpretada como petulância, não podia contrastar mais com o acanhamento e falsas modéstias dominantes. Conquistou inimizades, mas um número muito superior de seguidores, deslumbrados com a verve de uma autora que procurou como poucos aceder aos recantos mais escondidos da condição humana.
O primeiro romance já tinha chamado a atenção de nomes como Aquilino Ribeiro ou Ferreira de Castro, mas foi com "A Sibila", em 1954, que o meio literário se convenceu de que estava na presença de uma autora muito especial. O romance que, segundo Eduardo Lourenço, "marcou o fim da hegemonia do neo-realismo na literatura portuguesa", cotar-se-ia como a mais emblemática das suas obras, mesmo que o sentimento da autora em relação a ele não fosse "nada de especial", preferindo "Sebastião José", aproximação à vida do Marquês de Pombal.
O Nobel nunca chegou - com desdém afirmava preferir o Nobel da Paz ao da Literatura -, mas o reconhecimento não esteve ausente da sua obra. A começar pela sua cidade de eleição, o Porto, que há 30 anos lhe atribuiu a medalha de honra, mas passando também pela Presidência da República. Em 2006 recebeu a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago das mãos de Jorge Sampaio. Condecorações que afirmava receber com gosto, mas que não a inebriavam: " A literatura tem um lado de diversão, de mistificação. A realidade é outra coisa".