Presidente do Infarmed critica postura comercial da farmacêutica. Abbott promete aumentar ainda mais a produção.
Mal chegou ao mercado, os diabéticos já sabiam que estava ali um dispositivo "revolucionário" que evitava as permanentes picadelas nos dedos e permitia controlar melhor os níveis de açúcar no sangue. O trauma dos mais pequenos podia ter os dias contados. O que não podiam adivinhar era as dificuldades que teriam de enfrentar para adquiri-lo. Um ano depois de começarem a ser comparticipados, os sensores FreeStyle Libre estão sempre esgotados.
Doentes, farmácias e regulador do medicamento estão furiosos com a Abbott, a farmacêutica com a exclusividade do produto. O FreeStyle Libre inclui um aparelho leitor, de aquisição única, e sensores que se colocam no braço e duram 14 dias. São estes descartáveis que estão permanentemente em falta. "Há farmácias com espera superior a dois meses", admite o Infarmed. A Associação Nacional de Farmácias e a Associação de Farmácias de Portugal já fizeram várias reclamações.
Pais refém da empresa
"O dispositivo está a ser rateado desde que entrou no mercado", critica a presidente do Infarmed, acusando a empresa de ter uma postura "comercial e não de saúde pública". Ao JN, Maria do Céu Machado explicou que o facto de não haver alternativa no mercado deixa o país "refém das condições da empresa".
As dificuldades de produção face a uma procura muito acima das expectativas, são argumento que não convence todos. Até porque a empresa vendeu, durante todo o ano, o produto online ao preço de 59,90 euros (sem comparticipação), um acesso que levanta dúvidas de concorrência e ética porque privilegia quem tem dinheiro e pode dispensar a comparticipação de 85% do SNS. Atualmente, as vendas online estão a ser recusadas a novos clientes e os antigos têm acesso a quantidades limitadas.
Sem responder diretamente às questões do JN, a Abbot diz que, depois de "uma procura sem precedentes um pouco por todo o Mundo", tem aumentado a a produção. Em julho dobraram a produção dos sensores e continuam a investir nesse sentido. "O nosso objetivo e a nossa promessa é assegurar que toda a gente que precisa do FreeStyle Libre o terá", refere.
Limites atingidos
A negociação para a comparticipação do dispositivo em 2019 está em curso. Infarmed e Abbott estarão a discutir o alargamento da comparticipação a mais doentes e o preço. O último acordo, como foi anunciado, previa o tratamento de 15 mil diabéticos tipo 1 e alguns tipo 2 (os que injetam insulina várias vezes por dia). Porque o dispositivo é "mesmo bom" e porque terá havido prescrição excessiva para os diabéticos tipo 2, o teto foi rapidamente atingido.
O JN desconhece os termos do acordo com a Abbott, mas em regra as negociações por tratamento obrigam as empresas a devolver verbas quando os limites são ultrapassados. Fontes ouvidas pelo JN acreditam que esta será razão para o abastecimento a conta-gotas das farmácias. A Abbott também não respondeu a esta questão.
A falhar com doentes
A validade do sensor de Paula Klose está a terminar. A presidente da Associação de Jovens Diabéticos de Portugal tem reservas em várias farmácias, mas "ninguém garante que chegue a tempo". "Tem sido muito complicado, está constantemente esgotado", corrobora Emiliana Querido, presidente da Federação Portuguesa das Associações de Pessoas com Diabetes.
"Já nem sei o que dizer às pessoas". Rita Araújo Monteiro, diretora técnica da Farmácia Saúde, em Leça da Palmeira, está "furiosa" com a empresa. A última encomenda que fez, no final de novembro, não chegou e há dias disseram-lhe que só no fim de fevereiro. "Fiz queixa e depois disseram-me que talvez consigam no final da próxima semana. Isto não se faz, estão a falhar com as farmácias, mas sobretudo com os doentes", critica a farmacêutica.
Saber mais
59,90 euros custa o sensor
FreeStyle Libre à venda na internet. Na farmácia, com receita, fica por 7,95 euros e dura 14 dias. O leitor dos níveis de glicose é de aquisição única e cedido pelo SNS.
Quem tem acesso
Desde 8 de janeiro de 2018 que os diabéticos tipo 1 (crianças com mais de quatro anos e adultos) e alguns tipo 2 (com múltiplas injeções de insulina diárias) têm direito ao FreeStyle Libre, com comparticipação de 85% através de receita médica.
Sensor evitava três ou quatro picadelas
Em maio do ano passado, Ana Pato, 13 anos, experimentou pela primeira vez o FreeStyle Libre. Adorou. Diabética tipo 1 desde os dois anos não sabia o que era passar horas sem ter de picar os dedos. O dispositivo não evitava todas as picadelas - mantinha a primeira do dia e antes das refeições, explica - mas diminuiu "umas três ou quatro, o que é muito". Um simples passar do leitor sobre o braço permitia-lhe perceber a evolução da glicose nas últimas horas e agir em conformidade. Fazia-o sempre antes das aulas de educação física, a meio das aulas, com discrição, e na praia também. Ana fala no passado porque já não tem o sensor há mais de uma semana e teve de voltar a picar os dedos todos. "Esgotou completamente", realça a mãe, Joana Tavares, também diabética, que já fez reservas em duas farmácias.