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Autor Tópico: "Não estamos a lutar só contra 18 polícias, mas contra todo o sistema que perpet  (Lida 397 vezes)

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Offline Nelito

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Celso Lopes e Flávio Almada, ambos com 34 anos, foram duas das seis vítimas na esquadra de Alfragide, a cinco de fevereiro de 2015

Celso Lopes e Flávio Almada, ambos com 34 anos, foram duas das seis vítimas na esquadra de Alfragide, a cinco de fevereiro de 2015, dos crimes de tortura, tratamento desumano e cruel, sequestro e agressões violentas, motivadas pelo ódio racial, de acordo com uma investigação da Unidade Nacional de Contraterrorismo da PJ, coordenada pelo DIAP da Amadora. A foto que publicamos foi tirada uma semana depois da violência policial, com Celso ainda a recuperar de um tiro, com bala de borracha, à queima roupa, por um dos agentes. Não quiseram agora ser fotografados. Ainda têm medo.

Quem é o Celso Lopes, quem é o Flávio Almada?
Celso Lopes- Sou português, e vivo desde que nasci, há 34 anos, na Cova da Moura. Os meus pais vieram de Cabo Verde para Portugal em 1971. Ainda lutou contra o fascismo que vigorava na altura. Trabalhou na Lisnave. Tive um percurso de vida normal como qualquer outro cidadão lisboeta, estudei no Restelo da primária ao liceu. Fiz o 11º, mas depois tive de ir trabalhar. Entretanto terminei o 12º ano e agora, logo que tenha estabilidade financeira, quero fazer uma licenciatura.
Flávio Almada- Sou cabo-verdiano e tenho 34 anos. Estudei até ao 12º ano em Cabo Verde e depois candidatei-me a Sociologia na Universidade da Beira Interior e entrei. Fiquei um ano, mas por razões financeiras tive de deixar e fui trabalhar na construção civil. Enquanto isso tentei à noite fazer um curso de tradutor-intérprete mas voltei a parar porque as propinas eram caras demais. Era uma universidade privada. Parei mais uma vez. Fui trabalhar para juntar o dinheiro e mais tarde voltei e concluí licenciatura em tradução e escrita criativa, antigo curso de tradutores e intérpretes, alterado com o processo Bolonha. Ia estudando, parando, trabalhando para me sustentar. Fiz formação para inclusão através da arte na Gulbenkian, distribui muita publicidade, trabalhei como auxiliar em escolas, tudo para pagar a faculdade. Entrei no Mestrado em Estudos Urbanos da FSCH/ISCTE. Tive de parar por razões pessoais e profissionais. Sempre colaborei com o Moinho da Juventude desde que vim de Cabo Verde. Agora sou mestrando em Estudos Internacionais no ISCTE e sou Membro da direção do Moinho da Juventude e lá também desempenho funções de Agente de Educação Familiar.
Porque acham que este caso de denúncia de violência policial, que resultou numa acusação sem precedentes contra 18 polícias, foi diferente dos outros, nos quais a maioria acaba arquivada?
CL- Não posso entrar ainda em muitos juízos ou euforias, nem comemorações. Poderá vir a ser um ponto de viragem. Pode ser um início em que as pessoas que têm uma grande responsabilidade, assumem essa grande responsabilidade e quando a descartam são chamadas à atenção e têm de prestar contas perante quem analisar e fazer o que está na lei. Eu não posso ser contra uma instituição, mas estou desgastado com tantos acontecimentos semelhantes a este e ver sempre o mesmo resultado, que era nós, as vítimas, a responder a uma acusação. A partir deste momento temos uma alteração. Houve uma longa e exaustiva investigação de dois anos - e não são dois dias ou duas semanas - e foi possível concluir que o que dizíamos era verdade. Todos sabemos que a PJ quando está no terreno não é para brincadeiras, leva muito a sério o que faz e são pessoas com uma formação muito superior. Sabendo o que aconteceu e conhecendo agora a acusação, claramente que a verdade triunfou. Agora para que o que falta tenha o mesmo resultado, será uma grande batalha. Isto é uma luta. Não estamos a lutar contra apenas 18 polícias arguidos. Estamos a lutar contra um sistema que perpetuou esta violência, que continua a dar frutos e a continuar a criar o mesmo tipo de pessoas, com as mesmas características e padrões que, durante anos a fio levou a que, apesar das muitas queixas, haja muito resistência a assumir os erros de maus profissionais. Mas nós sabemos que eles são pessoas, têm erros e falhas, podem ter convicções que não se enquadram numa instituição de respeito como deverá ser a PSP, entram pelos piores motivos e têm liberdade, a partir do momento em que lhe é dado um uniforme e uma arma, dão azo à imaginação e a essas convicções desumanas, com as quais nos presenteiam há anos. Espero agora que a justiça seja célere, imparcial, que analise somente os factos, não se deixe influenciar e que sirva de exemplo. Que Portugal sirva de exemplo enquanto democracia, que tanto tem ainda para crescer, nomeadamente em defender os direitos de todos.
FA- Acho que neste caso concreto devemos salientar o papel da própria comunidade que não ficou quieta, manifestou a sua indignação. Isso foi muito importante. Desta vez as entidades competentes fizeram o seu trabalho. Analisaram os factos e chegaram a uma conclusão. Tinha-se chegado a um pico de violência inaceitável. Ainda na outra semana um polícia brutalizou um jovem em pleno tribunal de Alfragide, contou-me uma advogada. Quando acontecem estes casos a maioria das pessoas, não só na nossa comunidade, dizem que não vale a pena fazer queixa porque não vai dar em nada. Esta acusação já teve um efeito, de acordo com o que temos ouvido no bairro, que é mostrar que há uma possibilidade de voltar a confiar na Justiça. Isso é muito bom para o país, num Estado de Direito que não tem funcionado na Cova da Moura. Ali é um Estado de exceção permanente. Todos os jovens são estigmatizados, criminalizados. O erro começa logo à partida como o Estado organiza o território com base em critérios de segurança e cria as "zonas urbanas sensíveis". Este bairro, dizem, é de risco e isso pressupõe respostas musculadas. O simples facto de um jovem tentar defender os seus direitos é considerado uma ofensa. E tantos são os casos de polícias que agrediram jovens só porque invocaram os seus direitos. Chapada logo. Ainda esta semana o DN publicou um testemunho da Lieve Meersschaert, a antiga diretora do AMJ, segundo o qual um polícia partiu o cartão de cidadão de um jovem enquanto dizia: "Não há português preto". Tudo isso influencia o imaginário coletivo.
Como se chega ao ponto de, de acordo com a acusação do MP, uma esquadra inteira ser cúmplice de crimes tão graves motivados pelo ódio racial?
FA- Não foi um caso isolado. A violência policial tem sido comum e até já resultou em mortes. Quem é julgado é quem morreu ou quem é agredido. A partir do momento em que se diz que um bairro é de risco está-se a justificar uma resposta de exceção. Não vejo uma cultura de armas, de violência intensiva, de guerras de gangues, aqui em Portugal, como vemos noutros países. Por isso não sei se se justifica este tipo de resposta. Porque é que isto aconteceu? Durante 400 anos , desde as ordenações filipinas que se referiam aos negros como "escravos ou bestas", que há uma institucionalização de quem é e não é humano, passamos pela escravatura, houve uma racionalização desse padrão. Em 1974 Portugal venceu um regime fascista, os povos africanos libertaram-se, mas a sociedade portuguesa mantém resquícios do colonialismo. Não chegámos a descolonizar instituições, há muitos silêncios. E mais, o luso-tropicalismo de Gilberto Freire, amplamente difundido, inventou a exceção para Portugal, que era um país sem racismo. O que aconteceu a cinco de fevereiro de 2015 despoletou o debate, mas a violência racista é 24 horas por dia, dito de forma simbólica. A comunidade da Cova da Moura é ocupada pela polícia. Uma vez, preocupado com o facto das nossas crianças todos os dias verem polícias de shot-gun, perguntei a um oficial o que achava se os filhos dele vivessem num bairro com segurança praticamente militarizada, com blindados, ele disse-me que não gostaria. Mas quando lhe perguntei se ele achava certo o que acontecia na Cova da Moura, ele olhou-me e ficou em silêncio.
O bairro tem traficantes e outros criminosos...
FA- A prisão de Évora, se não estou em erro, está cheia de polícias. A Polícia Judiciária Militar já deteve militares, incluindo oficiais, por suspeitas de corrupção e negócios ilícitos. Em Tancos, muito material militar desapareceu possivelmente com cumplicidade de militares. Parto então do princípio que nenhum polícia ou militar presta? Crio um estado de exceção? Claro que não. É uma pequeníssima minoria que faz essas coisas. Mas isto mostra a relação de poder. O critério não é o mesmo para todos e uma pessoa que observe a sociedade vê as suas contradições. Na Cova da Moura, no 6 de maio, em Sta. Filomena são todos selvagens. E isto tem consequências muito complicadas. Quando se violenta um jovem e não se faz justiça, por um lado, e incentivas a impunidade, por outro, crias revolta nesse jovem, que podia contribuir de forma positiva para a sociedade em geral e para a sua comunidade.
Celso, mas nem sempre foi assim, pois não? Houve uma altura em que havia diálogo e respeito entre a polícia e os moradores... O que piorou nos últimos anos?
CL- Parto do princípio que as pessoas que vêm trabalhar para esta zona devem saber que a comunidade é constituída por pessoas de diferentes contextos culturais, com valores próprios. Acredito que as pessoas que são colocadas em locais como o concelho da Amadora devem ter um maior interesse e cuidado em conhecer essas culturas diferentes, para que não haja choque cultural quando se deslocam ao terreno. Parto do princípio que um oficial que vem comandar uma esquadra tem um maior discernimento e sabendo os diferentes contextos culturais, garante que vai prevalecer a lei, com direitos e deveres. Da mesmo forma que existem os santos populares em junho, aqui temos o Kola San Jon - património imaterial de Portugal desde 2013. Agora como é que o Estado português reconhece esta festa, uma prática cultural de um outro país, considerando-o algo seu também, e depois temos um cinco de fevereiro de 2015? Enquanto há pessoas que trabalham para caminharmos juntos, outros visam destruir tudo isso porque não aceitam que existem ali pessoas. Quando vemos a constante desumanização das pessoas da Cova da Moura, do 6 de maio, de Sta. Filomena, penso e já senti na pele, que é complicado encetar um diálogo com uma pessoa que não nos considera sequer como um ser humano.
Mas isso acontece com todos os polícias?
CL- Não posso generalizar, mas sim, acontece com a grande maioria daqueles que têm como missão patrulhar esta zona. Só o ato de falarmos com eles, de invocar-mos os nossos direitos é logo motivo para respostas violentas. É um aviso para que para a próxima seja ouvir e calar. É notória a diferença de atitude destes polícias. Conheço várias partes de Lisboa e sei que há procedimentos diferentes. No outro dia um responsável de um sindicato da PSP disse na televisão que os polícias têm medo de vir para esta esquadra e medo de patrulhar o bairro... Não sei que tipo de formação têm, que preparação psicológica têm os polícias, mas se têm medo, se não têm capacidade, então têm que ser substituídos. Costumamos dizer que um medricas mata mais rápido que um corajoso. O corajoso tem discernimento, analisa a situação e o risco. O cagão, ao primeiro ruído, até do vento passar, assusta-se e dispara. Ou arranjam homens sem medo que não se esquecem que estão a lidar com pessoas, ou então descartam esses medrosos e começam a formar deste muito cedo pessoas que sabem que estão numa profissão de risco. Se não quem arrisca somos nós. Se uma pessoa com medo entra numa zona supostamente de risco, quem está em risco somos nós. A qualquer momento, como já aconteceu, mata alguém. Não esquecemos em 2001 quando um polícia atirou a matar e matou o Ângelo. Depois nem teve a humanidade de chamar a ambulância. Arrastaram-no pela estrada e atiraram-no para dentro de uma carripana da polícia. Por isso digo que não nos tratam como humanos. Não é o imaginário, é a realidade. Quando um jovem vê o seu cartão de cidadão partido porque é negro e por isso não pode ser português, é agredido por falar, o que estaremos a criar enquanto sociedade? O que queremos que se venha a despoletar no futuro? Se as pessoas não começarem a agir, a assumir que existem problemas na sociedade, falar claramente sobre eles, enquanto não houver essa coragem - e é preciso muita coragem, porque não são cravos que vão mudar porra nenhuma - se as pessoas não assumirem as suas responsabilidades, este país está condenado. Nós não queremos que Portugal seja uns EUA, que haja crimes raciais e batalhas na rua. Depois de ser pública a acusação, o país descobriu que dois gémeos negros são os melhores bailarinos, que até temos muitos casais mistos... E isto quer dizer o quê? Para mostrar que não somos um país racista? Mas é impossível camuflar a realidade. Aqui no bairro desde que o Comandante Pereira (antigo líder da PSP na Amadora, afastado em 2010) chegou, fez-se um protocolo, estabeleceram-se pontes e acreditávamos que era possível falar. Quando o afastaram todo esse trabalho foi deitado por terra.
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