São 320 os homens que têm paralisado o trânsito de mercadorias no Porto de Lisboa. O acordo chegou ao fim de 37 dias de greve
"De um coletivo de desconhecidos a um grupo de profissionais em forte protesto." Foi assim que, em 2013, durante uma de várias manifestações que foram feitas desde então, António Mariano, presidente do Sindicato dos Estivadores, descrevia a classe.
A descrição não estava longe da verdade. Os estivadores deixaram de ser um grupo desconhecido e vieram encher noticiários desde que, em 2012, deram início a uma série de greves que já acumulam 441 dias de paralisação no Porto de Lisboa. Os salários em atraso, as horas mal pagas e a incerteza de cada dia de trabalho são histórias que começam agora a ganhar espaço, sobretudo pelas palavras das mulheres dos estivadores.
"Quando me juntei com o meu marido, ele já era estivador há dois anos. Passaram seis anos e ele continua como eventual, onde trabalha com contratos diários. Ou seja, trabalha quando é preciso, vai para onde é preciso e recebe ao turno. Ganha por turno a enormíssima quantia de 46 euros e chegou a trabalhar 48 horas seguidas sem dormir." O testemunho é de Patrícia Rosa, uma das mulheres que se juntaram ao movimento Há Flores no Cais, das mulheres dos estivadores. O seu marido é um dos 46 eventuais (trabalhadores chamados para a prestação de serviços pontuais) que trabalham no Porto de Lisboa. Ao todo, há 320 estivadores a assegurar a operação do porto da capital, dos quais metade pertence aos quadros dos operadores. Entre a restante metade, 46 são eventuais e os restantes (114) pertencem ao quadro da Porlis - Empresa de Trabalho Portuário.
A última vez que os salários dos trabalhadores portuários foram atualizados foi há seis anos. Segundo os dados a que o DN/Dinheiro Vivo teve acesso, o atual salário-base de um estagiário é de 1046 euros, só podendo o trabalhador ficar nesta categoria durante um ano. No escalão seguinte, o salário é de 1443 euros e, no topo da tabela salarial, passa para 2326 euros. São exatamente os mesmos valores que a Confederação dos Sindicatos Marítimo e Portuário (a que o Sindicato dos Estivadores chegou a estar associado) disponibilizava em 2010 - o salário médio bruto de um trabalhador português por conta de outrem é de cerca de 900 euros. A isto acrescem as horas extraodinárias, só podendo os estivadore receber até 250 horas de trabalho extraordinário por ano. Significa isto que, anualmente, um estivador que esteja no topo da carreira pode receber cerca de 3300 euros em horas extra. E quando os estivadores cumprem greve, o sindicato assegura os salários por inteiro, mais um sinal de união entre estes trabalhadores que aparecem frequentemente vestidos com T-shirts com a mensagem Proud to be a docker.
Numa carta aberta a António Costa no blogue, as mulheres dos estivadores dizem que estes trabalham "80 horas semanais. Nunca, em momento algum, ganharam mais do que 12,20 euros à hora brutos. O salário normal é de oito euros à hora brutos".
Dentro de seis meses, dos 46 eventuais, 23 vão ser integrados nos quadros da ETPL - Empresa de Trabalho Portuário de Lisboa e a Porlis não poderá contratar mais trabalhadores. Contudo, e apesar da atualização das tabelas salariais, não haverá aumentos, esclareceu ao DN/Dinheiro Vivo Morais Rocha, presidente da Associação dos Operadores do Porto de Lisboa.
Da "brutal luta" à "vitória"
É preciso recuar quatro anos para perceber o porquê de 441 dias de greve. O conflito ganhou forma em 2012, quando foi aprovado o novo Regime Jurídico do Trabalho Portuário (ver texto da página 5). Um ano, nas palavras de António Mariano, que "foi de contínua e brutal luta nos locais de trabalho e nas ruas".
Contínua foi: a Associação dos Operadores do Porto de Lisboa (AOPL) dá conta de uma greve de seis meses nesse ano, que provocou quedas superiores a 40% no tráfego de cargas marítimas. Brutal também: basta lembrar a manifestação de novembro de 2012, em que alguns estivadores - identificados pelas camisolas que vestiam - participaram no arremesso de pedras à linha de agentes da PSP que bloqueava o acesso à escadaria da Assembleia da República.
Violência à parte, acabaram por não ser infundados os protestos. Quando Álvaro Santos Pereira, então ministro da Economia, garantia que a nova lei não ia pôr em causa os postos de trabalho, os estivadores asseguravam que a legislação permitia "substituir profissionais com décadas de experiência por trabalhadores precários e com salários de miséria". Uma situação que ocorreu em 2013: no final de junho, 47 estivadores que trabalhavam no Porto de Lisboa havia mais de seis anos foram despedidos. Os que mantiveram emprego, disse na ocasião António Mariano, foram "obrigados a trabalhar dois e três turnos diariamente". Será esse o exemplo do marido de Ana Rato, outra das mulheres do movimento Há Flores no Cais. "Só um grande homem suporta trabalhar 16 horas por dia, dias a fio, ou 24 horas seguidas, como tantas vezes aconteceu", escreve.
A 9 de setembro desse ano, nova machadada à estabilidade laboral dos estivadores: a Porlis - Empresa de Trabalho Portuário foi constituída, tendo por missão a "cedência temporária de trabalhadores para o exercício de tarefas portuárias de movimentação de cargas".
Em 2014, o sindicato conseguiu chegar a acordo com as associações patronais para reintegrar os 47 trabalhadores, mas, destes, 29 foram readmitidos como "precários". Um ano depois, em dezembro de 2015, os operadores anunciaram falta de "liquidez para os salários". Para as associações patronais, foi a "chantagem sofisticada" do sindicato que estrangulou as empresas. António Mariano disse, em entrevista à SIC, nesta semana, que os salários estão em atraso desde essa altura.
A última etapa desta luta aconteceu na sexta-feira, quando foi assinado o acordo, que os estivadores já consideram "uma vitória". O sindicato colocou uma mensagem no Facebook onde dizia que "todos por todos vencemos uma batalha, mas sabemos bem que todos por todos faltam muitas mais".