Ministério dos Negócios Estrangeiros vai avaliar impacto da detenção do agente nas relações com a Rússia
"Uma caixa de Pandora." É com esta expressão que uma fonte que apoiou a investigação que levou à detenção de um espião português a vender documentos secretos a um espião russo caracteriza a perspetiva dos protagonistas da Operação Top Secret - Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária. Os investigadores suspeitam que Frederico Carvalhão Gil possa ter tido acesso a matérias mais sensíveis com a ajuda de alguns colegas do Serviço de Informações de Segurança (SIS), embora estes pudessem não saber o destino que o espião iria dar a esses documentos.
Carvalhão Gil estava sob suspeita há cerca de um ano e deixara de ter acesso a documentos com classificação acima de "confidencial", mas como veterano dos serviços os seus pedidos dificilmente seriam negados. Entre os documentos apreendidos pela UNCT estarão matérias relacionadas com a NATO, que habitualmente envolvem informação sobre os sistemas de defesa dos países da Aliança.
Documentos com marca de água
A caixa de Pandora, uma vez aberta, pode também revelar como foi possível que Carvalhão Gil trouxesse para fora do Forte da Ameixoeira, onde se localiza a sede do SIS e do SIED, tais documentos, cujo manuseamento está sujeito a apertado controlo. Todos os documentos do SIS estão ao abrigo do segredo de Estado. Por causa das normas de segurança nem é permitido, por exemplo, o uso de pen drives nos computadores. Uma das normas de segurança é também os documentos secretos terem uma marca de água invisível que permite detetar quem mexe nesses documentos. Além de todas as pesquisas e impressões ficarem registadas.
O DN sabe que esta foi uma das preocupações do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa, que foi informado do processo desde que este teve início.
Detetada e detida a "toupeira", os serviços de informações estão a avaliar os danos provocados pela fuga de informação para os russos, que se suspeita ter vários anos. "Se calhar, agora percebe-se porque determinada operação no passado correu mal. Talvez alguém já estivesse prevenido", disse ao DN fonte próxima do processo. "A questão não pode resumir-se a eventuais documentos. O valor de um homem destes para um serviço estrangeiro está também nos seus contactos, nas informações que pode dar sobre alvos desse serviços, na obtenção de informação sobre agentes de países amigos, etc. É como uma porta que se abre. Há todo um valor imaterial que também deve ser contabilizado e que poderá ter provocado danos ao Estado", acrescentou essa fonte.
O caso teve repercussões internacionais, principalmente em Itália, onde foi executada a detenção, num feito histórico para as autoridades portuguesas: foi a primeira vez que dois espiões foram detidos com o mandado de detenção europeu. Vários países, cujas secretas enviam regularmente informação para o SIS, estão a acompanhar atentamente o desenrolar da investigação, cujo próximo passo será avaliar, juntamente com estas agências, a dimensão dos "estragos" para a segurança do Ocidente, que pode resultar das informações passadas aos russos.
Ministério acompanha a situação
Contactada pelo DN, fonte oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros salienta que estão "a acompanhar a situação" e que avaliarão "em devido tempo" e "nos canais apropriados" as "eventuais implicações nas relações bilaterais entre Portugal e a Rússia".
Mudou várias vezes de hotel
Foi só na sexta-feira da semana passada que a PJ teve a certeza de que Carvalhão Gil iria viajar para Roma. À última hora, a brigada de inspetores da UNCT montou uma operação para seguir os seus passos, com a colaboração da polícia italiana, ao mesmo tempo que os procuradores do MP avançaram com o mandado de detenção europeu contra o agente do SIS e o seu contacto russo.
De acordo com a reconstituição feita ao DN por fontes próximas do processo, a polícia italiana teve de mobilizar dezenas de agentes para o terreno, de forma a poder realizar uma paciente, discreta e atenta vigilância ao espião português, transformando a cidade de Roma num cenário de filme de espionagem, em que os agentes que vigiam o suspeito se vão revezando para nenhum ser detetado e "queimar" a operação. "Se a operação falhasse, nunca mais conseguiríamos chegar lá. Bastaria uma simples suspeita para que o encontro fosse abortado e eles não voltariam a contactar."
Treinado nas artes da espionagem, o agente português, depois de chegar a Roma, mudou várias vezes de hotel. No sábado, optou por circular aleatoriamente pela cidade até chegar ao ponto de encontro com o seu contacto russo. Uma zona, segundo apurou o DN, junto ao rio Tibre, onde se localizam vários restaurantes, normalmente frequentados por muitos turistas. Aí, a vigilância policial teve de despistar (numa estratégia de contra-vigilância) uma eventual vigilância do SVR, serviço de espionagem russo (ex-KGB), que poderia estar a dar cobertura ao seu agente.
Concluída a transação, os polícias partiram para a detenção dos dois suspeitos, enquanto uma segunda equipa, acompanhada por inspetores da Judiciária, fazia buscas no hotel onde estava hospedado Carvalhão Gil. Com Octávio Lousada Oliveira