Não está segura de que instituições sem fins lucrativos como a que dirige sejam "valorizadas politicamente" e considera essencial atualizar a articulação de recursos entre os vários setores na saúde. Enquanto ex-ministra antes das quotas, Leonor Beleza alerta para a falta de equidade na ciência e para a falta de mulheres na Presidência ou na liderança do Governo. E não tem dúvidas de que estamos a afastar da política os melhores, com o ambiente crispado em relação a quem desempenha cargos públicos.
Num país tantas vezes deprimido e pouco orgulhoso de si próprio, o Centro Champalimaud é um farol em inovação e investigação científica?
Sim, é uma boa descrição. Aquilo que tentamos fazer no Centro, que se chama Centro Champalimaud para o Desconhecido, é simultaneamente um apelo à nossa história e uma espécie de encargo pesado sobre aqueles que lá trabalhamos. O grande objetivo é fazer o melhor que sejamos capazes, sem nenhuma espécie de limitação decorrente de geografia ou da noção de que eventualmente não conseguiremos fazer isto ou aquilo.
Ser presidente da Fundação há tantos anos moldou a sua vida, a sua forma de olhar?
Não creio que tenha mudado propriamente a minha forma de olhar, mas estou mergulhada numa área muito diferente daquilo que sempre me aconteceu ao longo da vida. Tive muito que aprender. Não sou capaz de discutir com um cientista, é evidente, nem com um médico. Não tenho bagagem científica e técnica para esse efeito, mas habituei-me a perceber que as escolhas podem estar antes dessas bagagens, porque são escolhas de caráter, de alguma maneira, político, escolhas de caminhos, de fazer isto em vez de fazer aquilo. Por exemplo, uma das primeiras escolhas que tivemos de fazer foi se seríamos uma fundação que fizesse diretamente a investigação e prestasse cuidados médicos ou que se limitasse a financiar a investigação feita por outros.
Em função do que o país precisa?
O que o país precisa também foi um dos critérios. Trabalhamos em neurociências e em cancro e a escolha das áreas foi feita com base, sobretudo, no critério de aquilo que é gasto em investigação versus o sofrimento que as áreas de doença ocasionam.
Tem dito, ainda na semana passada ao receber o prémio Universidade de Coimbra o afirmou, que a ciência ainda não tem a importância que merece. Essa desvalorização tem responsabilidade política?
Quando digo que não tem a importância política que chegue é ao nível da responsabilidade política e do investimento que é feito. Provavelmente tem a ver com a forma como as pessoas que decidem encaram aquilo que os cidadãos em geral consideram mais importante em termos de investimento. Durante a fase da covid, percebemos que precisávamos como de pão para a boca da contribuição dos cientistas e dos médicos. A ciência tornou-se mais presente e os cientistas vinham aos meios de comunicação explicar como é que era, e os médicos e por aí fora.
Esse impulso perdeu-se?
Eu acho que está excessivamente fresco nas nossas cabeças para que a desvalorização possa ter acontecido. E também penso que os cidadãos em geral vivem sucessivamente preocupados com a sua saúde e com a noção de que muitas coisas em relação à saúde resultam daquilo que a ciência pode prestar.
Falamos muito da desigualdade na questão do acesso das mulheres à ciência, mas há outra questão que tem levantado, sobre a discriminação nos ensaios e nos medicamentos. A medicina está a despertar para essa diferença?
Julgo que nisso este século já trouxe avanços. Em relação à saúde das mulheres aconteceram coisas como, por exemplo, os cateteres que conduzem tratamentos no interior do corpo terem sido dimensionados numa fase inicial para homens e, portanto, não serem adequados ao corpo das mulheres. Exceto naquelas áreas relacionadas com a maternidade e, portanto, com diferenças óbvias que todos sabemos que existem entre os homens e as mulheres; muitas vezes, as coisas foram estudadas em modelos masculinos ou com indiferença do que era o modelo. Sabe-se que as vacinas não fazem os mesmos efeitos, sabe-se que há uma série de aspetos que não são iguais. Sabe-se que as células têm sexo, as células não são iguais e podem ocasionar uma série de diferenças nos homens e nas mulheres.
Foi ministra antes da aprovação das quotas na política. Essa lei facilitou o acesso das mulheres?
Não tenho a mais pequena dúvida. Aliás, na altura escrevi a favor das quotas. O problema tem a ver com a nossa aproximação às coisas e a forma como as vemos. Falamos muitas vezes em baias ou pré-juízos, porque muitas vezes não somos capazes de julgar da mesma maneira as mulheres e os homens nos mais variados aspetos.
O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse que estaria na altura de termos uma mulher na Presidência. Concorda?
Como imagina, eu gostava muito um dia de ver uma mulher na Presidência da República ou como primeira-ministra.
Primeira-ministra já tivemos.
Sim, já tivemos, mas ainda na fase transitória do regime.
Já disse que nunca se imaginou no cargo, mas admite ter um perfil presidenciável?
Nunca me passou pela cabeça que fosse eu. Estou a falar com toda a sinceridade. Nunca vivi preocupada com isso. Ocupei vários cargos políticos porque aconteceu, não porque eu tenha pensado que seria comigo e nunca olhei para esses cargos como uma coisa que eu pessoalmente desejasse.
Mas também não exclui, se o caminho se proporcionar?
Eu já nem tenho idade. Já estou livre sequer de alguém se lembrar disso.
Admitiu já que o Ministério da Saúde foi o período mais difícil da sua vida. Hoje sente-se apaziguada em relação a esse período?
Isso está tudo ultrapassado. Foi muito difícil essa passagem, mas gosto também de dizer que me sinto uma privilegiada por muitas coisas na minha vida e estou absolutamente convencida que não tivesse eu sido ministra da Saúde, não seria presidente da Fundação Champalimaud. Foi o Ministério da Saúde que fez a minha ligação a esta área e ter sido designada presidente da Fundação é um privilégio de tal maneira relevante, que estou apaziguada e de certa maneira agradecida até.
Em setembro, afirmou que há um controlo invasivo das Finanças sobre a saúde. Temos tido serviços públicos limitados pelas nossas contas?
O controlo é muito minucioso, como se sabe, e passou a existir a partir do momento em que era necessário controlar muito todas as despesas que contavam no défice, que tem uma enorme relevância na forma como somos olhados e no nosso conforto nacional. Passou a haver de facto um controlo muito grande, mas não é apenas sobre as despesas da saúde, é em todo o setor público.
Mas é um controlo adequado ou abusivo? É castrador?
É possível que não seja suficientemente diferenciado consoante aquilo de que estamos a falar e que, por isso, se torne excessivo. O controlo das contas públicas é um ponto essencial, tem a ver com o bem-estar dos portugueses, é um nível muito, muito relevante. O problema é que, como tendemos muitas vezes entre nós a desconfiar excessivamente do que fazem os outros, em vez de lhes atribuir mais responsabilidades e depois julgá-los, interferimos minuciosamente em tudo o que fazem. Admito que fosse possível sofisticar os instrumentos de controlo de maneira a que ele não fosse tão presente, tão diário, tão minucioso.
Estando o país em mudança, nomeadamente na sua estrutura demográfica, é tempo de rever o modelo do Serviço Nacional de Saúde?
As ideias que estão por detrás da criação do SNS são ideias generosas, solidárias, corretas. Um país civilizado, para mim, é um país que garante que todos os cidadãos têm acesso a cuidados preventivos e terapêuticos e o que for necessário em relação à saúde, independentemente da sua condição. Na altura que fui ministra da Saúde, fiz tudo o que estava ao meu alcance para que o SNS fosse dotado dos meios, fosse eficaz, funcionasse com regras claras, garantisse a prevenção, preocupei-me particularmente com a saúde materno-infantil. É verdade que hoje as coisas são muito diferentes, por aspetos que têm a ver com a evolução da população, mas também porque a própria configuração do setor é bastante diferente. Há uma forte presença de setor privado, há uma forte presença de setor social e há, do meu ponto de vista, alguma necessidade de olhar para este conjunto e perceber como é que podemos melhor utilizando os recursos todos que temos.
Teme que acabemos por ficar com dois sistemas, um assistencialista, que é o público...
Pode haver esse risco, sim, e esse risco é mau. Há muitas coisas que dominamos com dificuldade e não é só o Serviço Nacional de Saúde; quando falamos nas questões da idade, há uma história também de sistema social de proteção. Uma das coisas complicadas em Portugal é a articulação entre o sistema social em geral, o que a gente chama de segurança social, a ação social dentro da segurança social, e o sistema de saúde. Os recursos deviam ser muito mais articulados. É um problema de atuação generalizada em torno da proteção dos mais frágeis, quer seja doença, quer seja simplesmente a idade. A história da idade é uma questão seríssima entre nós. Seríssima porque não conseguimos uma substituição de gerações e porque as pessoas ficam sozinhas, ficam abandonadas.
Estar numa fundação alterou a forma como hoje valoriza o Serviço Nacional de Saúde ou o papel dos privados no sistema?
Acho que não me modifiquei muito. Tive uma experiência grande, sobretudo na segurança social, com o setor de solidariedade em Portugal. Dependemos muito destas instituições em relação à maneira como tratamos as crianças, os idosos, as pessoas que têm dificuldades. A fundação, enquanto tal, pertence a esse setor. Estamos, evidentemente, num setor privado, mas não temos de remunerar acionistas, não somos uma instituição de caráter lucrativo. E eu sinto-me particularmente confortável, porque este tipo de instituições tem um lugar que precisa de ser valorizado. Não tenho a certeza que seja suficientemente valorizado pelos atores políticos em Portugal.
Como olha para a questão dos abusos sexuais, para um certo deslaçamento das hierarquias da Igreja Católica em Portugal com a sociedade?
Acho que é a própria Igreja ou alguns elementos da Igreja que estão a reagir. Por exemplo, foi publicada uma entrevista do arcebispo Francisco Coelho, arcebispo de Évora, pondo as coisas no lugar em que é preciso. E essa atitude vem de um bispo.
Mas temos em sentido contrário, por exemplo, o bispo de Beja a apelar ao perdão aos abusadores. Vê uma Igreja dividida?
Não é uma questão de divisão. Naturalmente os bispos têm experiências diferentes e maneiras diferentes de se dirigir a todos nós. Continuo a esperar que a Igreja vá reagindo da maneira que é preciso que aconteça, para que todos não tenhamos a mais pequena dúvida do caráter absolutamente inaceitável, absolutamente condenável daquelas coisas que aconteceram.
E tendo em conta o papel da Igreja no setor social, a confiança dos portugueses nessas instituições pode ser afetada?
Pode, claro que pode. Estamos todos a assistir a coisas que nos dizem muito. Eu sou católica, mas, sejamos católicos ou não, estamos todos a assistir a coisas que nos chocam muito. O que espero é que as reações vão acontecendo de maneira a que entretanto não percamos a confiança em instituições que têm uma enorme importância para os portugueses. Muitas das instituições de solidariedade em Portugal são relacionadas com a Igreja. E muitíssimas coisas importantes aconteceram em benefício dos cidadãos, e acontecem nessas instituições. Mas precisamos de uma atitude segura e muito firme no sentido de que são profundamente repugnantes muitas das coisas que vieram ao nosso conhecimento.
E que a lentidão da Igreja agrava?
Admito que muitos dos responsáveis da Igreja não estarão tão habituados como nós a falar para o conjunto das pessoas e a reagir àquilo que hoje as pessoas sentem. E, sim, achei que a reação foi lenta e achei que não foi adequada.
Sente preocupação com o crescimento de extremismos, quer nos movimentos sociais, quer nos políticos?
Ah, sim! Partilho da preocupação de muitos em torno de forças políticas que têm uma visão das coisas muitíssimo diferente daquela que eu própria tenho e que ameaçam a sociedade que foi construída, nomeadamente na sequência do 25 de Abril, e que é uma sociedade de tolerância, de liberdade, de discussão dos assuntos. Talvez tenhamos pensado durante algum tempo que em Portugal éramos mais imunes a isso. Mas já não somos. Precisamos de reconstruir a nossa confiança nos nossos sistemas.
Não têm sido os próprios atores políticos a abrir espaço a extremismos, ao não criarem motivos para essa confiança?
Receio muito que este ambiente muito crispado, de desconfiança sistemática em relação a quem está na atividade política, se vire contra nós todos e a certa altura as pessoas não queiram simplesmente assumir riscos, porque a vida deles e a das suas famílias é excessivamente atingida de maneira negativa. Acho que é muito preciso que os políticos, que são quem escolhe as regras, corajosamente olhem para muitas dessas questões e em vez de estarmos todos com medo do que é que vão dizer deste e daquele e daquele outro, se preocupem em ver como é que conseguimos que outros, e sobretudo jovens, considerem que a atividade política é nobre. Não me conformo com a ideia de que a gente possa acabar por só ter na política aqueles que não se importam nada que lhes chamem coisas... Não me conformo com isso.