É o maior espetáculo de teatro musical de rua do país e, todos os anos, põe Vila do Conde a mexer. Entre quem representa e quem, no segredo das oficinas, dá corpo às roupas e aos cenários, estão mais de meio milhar de pessoas, dos 4 aos 84 anos, que trabalham três meses para pôr de pé o projeto.
Emília está à frente, na sua cadeira de rodas. A coreografia pede que gire sobre si mesma. Não consegue. Abanará só o corpo. Atrás, uma mulher repara. Estende os braços, agarra na cadeira e gira com ela. As duas riem. O encenador, Amauri Alves, abre um largo sorriso. É isso "Um Porto para o Mundo": os afetos, a partilha, a interajuda, a inclusão. Na 5.a edição do maior teatro musical de rua do país - que decorre de 16 a 21 deste mês no cais da Alfândega -, a principal lição está bem estudada. O ensaio acaba em roda. Cantam, dançam, abraçam-se. São novos e velhos, analfabetos e "doutores", ricos e pobres, com mais ou menos maleitas. É Vila do Conde a uma só voz, orgulhosa das suas origens, a contar a sua história. "É para fazer junto, construir, dar a mão, pôr o coração, emocionar as pessoas", diz Amauri Alves, do alto do escadote que usa para se fazer ouvir entre 400 atores.
Fernanda Campos está de olhos postos no encenador brasileiro que, por ali, mudou vidas. Aos 76 anos, diverte-se a valer. "Em nova era só trabalhar no campo. Nunca soube o que era brincar. Agora aproveito", atira, entre duas gargalhadas. Faz parte do grupo de teatro amador "Os Ruidosos", de Fornelo. São eles, este ano, os mais velhos do espetáculo. Sair de casa, deixar a solidão, aproveitar a vida, esquecer as dores de costas e os joanetes, dançar o que não dançou aos 20 e rir muito. No grupo, a mais nova tem quatro anos. O mais velho 84. São todos voluntários, a maioria sem experiência teatral. E, entre o banho de cultura, a formação e a lição de história, passam três meses juntos, num convívio saudável que, para muitos, é razão de viver.
"Primeiro, é a história da nossa cidade que está a ser contada. Depois, é o estarmos juntas, conhecermos outras pessoas
Maria José Simães vem pelo quarto ano. Traz a mãe e as duas filhas. São três gerações no mesmo "barco". "Primeiro, é a história da nossa cidade que está a ser contada. Depois, é o estarmos juntas, conhecermos outras pessoas. É um projeto muito bonito", frisa.
Este ano, do duro trabalho na Seca do Bacalhau ao bota-abaixo do Lismar, parte da história é, para muitos, um passado que viveram. E essa emoção sente-se. Há netos que, em cena, roubam bacalhau como os avós faziam, os avós que assistiram ao bota-abaixo.
Pedro Monteiro é o sr. Baltazar, o último encarregado da fábrica. Na realidade, é professor de Biologia. N" "Um Porto para o Mundo", há cinco anos, descobriu o teatro. Nunca mais de lá saiu. "É uma alegria", assegura.
Na oficina da Lafontana - Formas Animadas, o trabalho não pára. Inês Elói coordena a confeção das roupas. São 400 pessoas em palco, algumas com duas e três roupas, do século XVI aos anos 90. Há centenas de botões para coser, bainhas de calças para subir, mais um avental, uma camisa, uma blusa. Fotografias de época, textos antigos, tudo ajuda ao desenho final. Depois são três meses a tingir, cortar, coser, pregar.
Injeção de otimismo
No andar de baixo, os armazéns são pequenos para guardar cenários e adereços. Entre voluntários e profissionais, a equipa tem 50 pessoas. Darcílio Calçada e Manuel Saraiva são dois antigos mestres serralheiros dos estaleiros que, todos os anos, ajudam.
"É uma injeção de otimismo. Estamos felicíssimos", conta Osnival Bufalo. Aos 68 anos, veio com a mulher, Angeles. Fazem parte do Instituto Cultural de Artes Cénicas do Estado de S. Paulo. Amauri tinha-lhes falado do projeto. Este ano, transformaram umas férias em Portugal em dois meses de ensaios. Fizeram "amigos para a vida", numa "experiência incrível".
"É uma emoção ver a alegria das pessoas, estes laços que se reforçam. É algo que nunca pensamos que pudesse ter esta dimensão", explica a presidente da Câmara, Elisa Ferraz, que, em 2015, pôs em marcha o projeto.